Muito além dos R$ 0,20
Brasil, 1964: a sociedade brasileira vai às ruas em um movimento contra o plano econômico do Governo João Goulart, deposto, logo depois, em um golpe de Estado. Brasil, 1984: cansada da ditadura, a população vai às ruas pedir o voto direto, nas Diretas Já. Brasil, 1992: os caras-pintadas pedem o impeachment do presidente Fernando Collor. Brasil, 2013: uma série de protestos se inicia após o aumento de R$ 0,20 na tarifa do transporte público paulistano e se espalha por todo o país; cada Estado com uma pauta independente.
Em comum, todos esses fatos históricos têm um povo, em diferentes épocas, lutando para mudar a cara do Brasil. De diferente, as manifestações deste ano têm uma pauta pulverizada, ao contrário do protesto ordeiro que levou manifestantes a ocuparem, no início desta semana, o teto do Congresso Nacional, em Brasília. As autoridades tiveram medo: haveria quebra-quebra, colocariam fogo ou invadiriam o prédio? Não: eles só queriam mostrar que desejam estar lá dentro, bem-representados.
O protesto não é pelo aumento de R$ 0,20 no valor da passagem; é por mudar o Brasil, e disso não há dúvidas. O Movimento Passe Livre é o descontentamento de uma sociedade que está fadada aos inescrupulosos serviços oferecidos pelo Estado e revoltada com a política e seus representantes – por ela escolhidos, não se pode omitir. A questão é por que esses mesmos protestos deixaram de ocupar brechas da recente história política brasileira – afinal, a pauta, generalizada, traz os mesmos pedidos por mais saúde e educação e menos corrupção e injustiça social.
Um grupo de congressistas apresentou a PEC 37, que retira do Ministério Público o poder de investigação – uma ode aos desmandos políticos. Ninguém protestou. Na semana passada, o ministro do STF Antônio Dias Toffoli afirmou que o julgamento do Mensalão ainda vai durar dois anos. Ninguém protestou. A inflação voltou: dos 315 itens que compõem o Índice Geral de Preços (IGP), 250 tiveram aumentos exorbitantes. Ninguém protestou. O atual governo perdoou dívida de US$ 1 bilhão de alguns países da África com o Brasil. Ninguém foi às ruas protestar.
É salutar toda essa luta por um novo Brasil. No entanto, não se pode dizer que o país acordou agora; as massas é que dormiam diante dos latentes fatos da política nefasta que se alastra pelos corredores do poder. O manifesto critica a postura leniente daqueles que elegeram, mas grande parte dos manifestantes vive uma letargia sem fim: não acompanha as sessões, não participa de conselhos, não sugere e pouco opina. Se os politicos tomaram conta do país, foi porque a sociedade, adormecida, assim permitiu.
Há a vontade de mudar o Brasil. O grande ganho de atos como os da última semana é fazer a sociedade parar, refletir, contestar e, principalmente, com ações concretas e participação popular direta na política, impedir que governos se transformem em tiranias.