Plea Bargain: Prender mais pessoas vai melhorar a segurança no Brasil?
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, lançou um pacote anticorrupção e antiviolência, o Projeto de Lei Anticrime, que visa alterar 14 leis no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei de Crimes hediondos.
Entre todas as propostas, inclui a criminalização do Caixa 2 e a ampliação da definição do que passa a ser considerado legitima defesa no que tange a agentes estatais (amplamente criticada por especialistas).
“nunca vi um cidadão honesto que trabalha e que estuda tomar tiro de polícia, só quem toma tiro de polícia é bandido” pic.twitter.com/ncTXFJ2iuM
— Thiago Mota (@tlmota) 4 de fevereiro de 2019
Mas uma das propostas menos comentadas foi a que mais chamou atenção dos defensores dos diretos humanos: o “Plea Bargain” tupiniquim.
O que é esse tal de ‘Plea Bargain’?
De maneira rasa, o termo significa “acordo judicial” ou “barganha” em português. Em outras palavras, Moro propõe que o Brasil importe o instrumento penal estadunidense em que o acusado negocia uma pena mais branda com o Ministério Público, que em troca pede sua confissão.
Dessa forma, a pessoa garantiria um aliviamento na sua condição e o Ministério Público não precisaria produzir provas, levando o processo direto para fase final, em que o juiz dá a sentença. Essa proposta se resumiria a situações como furto, assalto, homicídio e casos de corrupção sem organização criminosa.
A ideia por si não é nenhuma novidade na boca de Sérgio Moro, que desde 2016, quando ainda dizia que jamais entraria numa carreira política, já defendia publicamente a implementação do Plea Bargain. Na época ele explicou que “esse instituto poderia apressar os processos em que as provas são enormes, e economizaria até mesmo recursos do contribuinte”.
Mas como isso poderia ser ruim?
O jurista penal Murilo Medeiros Marques, para o Canal Ciências Criminais, fez uma breve análise do que significaria essa importação:
“A possibilidade de responder por um crime mais grave pode fazer com que o réu se sinta pressionado a aceitar o acordo mesmo sem ser culpado, existindo uma grande disparidade de forças entre as partes acordantes, chegando a ocorrer coerção, por parte da acusação, em determinados casos.
Ademais, por ser firmado em um cenário privado, o “contrato” acaba deixando a vítima do crime de fora da conciliação, criando, assim, uma desilusão com a justiça, uma vez que a sociedade deixa de ter acesso às negociações entre acusador e acusado, além do fato de ocorrer desigualdade no tratamento dos réus …”, explica.
Entretanto, o que antes era somente uma ideia, hoje se tornou uma possibilidade concreta, e assim a preocupação vem aumentando.
Baseado na reportagem “A inocência é irrelevante na era do Plea Bargain”, do The Atlantic, o advogado e militante dos direitos humanos, Diogo Cabral, fez uma thread no Twitter que explicita bem o quanto esse barco tá afundando nos Estados Unidos:
Sobre a proposta denominada “plea bargain” no pacote anticrime de Sérgio Moro, algumas informações a partir da realidade dos EUA nessa thread:
— Diogo Cabral (@Diogotapuio) 5 de fevereiro de 2019
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Nos EUA, a maioria das pessoas julgadas no sistema de justiça criminal hoje renuncia ao direito a um julgamento e ao conjunto de proteções que o acompanham, incluindo o direito de apelar
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Em vez disso, eles se declararam culpados. A grande maioria das condenações criminais é agora o resultado do Plea Bargain – cerca de 94% no nível estadual e cerca de 97% no nível federal.
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As estimativas de condenações por contravenção são ainda mais altas. Estas são estatísticas surpreendentes e revelam uma nova verdade austera sobre o sistema de justiça criminal norte-americano: muito poucos casos vão a julgamento.
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O juiz da Suprema Corte, Anthony Kennedy, reconheceu essa realidade em 2012, escreveu: “O comércio de cavalos [entre o promotor e o advogado de defesa] determina quem vai para a cadeia e por quanto tempo”.
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É isso que barganha é. Não é um complemento do sistema de justiça criminal; é o sistema de justiça criminal.
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Como os promotores acumularam poder nas últimas décadas, juízes e defensores públicos perderam o poder. Para induzir os réus a pleitear, os promotores muitas vezes ameaçam “a penalidade de julgamento”.
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Eles informam que os acusados enfrentarão acusações mais graves e sentenças mais duras se levarem o caso ao tribunal e forem condenados.
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As negociações facilitam que os promotores condenem os acusados que não são culpados, que não representam um perigo para a sociedade, ou cujo “crime” pode ser principalmente uma questão de pobreza, doença mental ou vício.
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E barganhas são intrinsecamente ligadas à raça, é claro, especialmente em nossa era de encarceramento em massa.
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De acordo com a Prison Policy Initiative, 630.000 pessoas estão presas em um determinado dia, e 443.000 delas – 70% – estão em prisão preventiva.
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Muitos desses réus enfrentam acusações de menor gravidade que não determinam mais encarceramento, mas carecem de recursos para pagar fiança e garantir sua liberdade. Alguns, portanto, sentem-se obrigados a aceitar qualquer acordo que o promotor ofereça, mesmo que sejam inocentes.
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Graças em parte ao plea bargain, milhões de americanos têm antecedentes criminais; em 2011, o Projeto Nacional de Direito do Trabalho estimou esse número em 65 milhões. É uma marca que pode ter consequências para a vida, educação, emprego e moradia.
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Ter um registro, mesmo para uma violação que seja trivial ou ilusória, significa que uma pessoa pode enfrentar acusações e punições mais duras se encontrar novamente o sistema de justiça criminal.
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A barganha judicial tornou-se tão coercitiva que muitas pessoas inocentes sentem que não têm outra opção senão se declarar culpadas. “Nosso sistema faz com que seja uma escolha racional declarar-se culpado de algo que você não fez”.
Prender mais pessoas melhora a questão da segurança no país?
Para começar, temos que saber que o sistema penal brasileiro se mostra desigual há muito tempo. Segundo os dados angariados e eficientemente dispostos pelo site Carcerópolis, o Brasil já conta com 726 mil pessoas encarcerados: “é como se todos os moradores do Amapá estivessem atrás das grades”, explicitam.
E, como explicado no site da Justiça Federal, “o perfil socioeconômico dos detentos mostra que 55% têm entre 18 e 29 anos, 61,6% são negros e 75,08% têm até o ensino fundamental completo.” Sendo mais direto: a maioria dos presos são pretos, jovens e com baixa escolaridade.
Mas antes o encarceramento em massa tivesse algum efeito. Estamos entre os quatro países com maior população carcerária (EUA, Rússia, China e Brasil, em ordem descrente), mas somos o único que mantém o encarceramento aumentando nas últimas duas décadas. E mesmo assim, a violência continua igual.
Bem, na verdade, ela piorou.
Em 2017 conseguimos atravessar a marca dos 30 homicídios a cada 100 mil habitantes, um recorde impressionante para um país que não se encontra em guerra — oficialmente.
E não só digo mais como vou além, além de ser seletivo em raça, idade e classe social e ineficaz em diminuir a violência, o encarceramento no Brasil é incoerente com a própria presunção da inocência — apenas a base do nosso sistema jurídico.
Voltando ao Carcerópolis, “40% das pessoas presas no Brasil não foram condenadas. São chamados de presos provisórios. Em média, 37% desses presos provisórios, quando julgados, são absolvidos ou têm que cumprir penas alternativas.”
Ou seja, em torno de 15% dos presos brasileiros são inocentes, só não passaram por julgamento ainda – e ficam mofando na cadeia, porque sim.
Uma verdade difícil de engolir
Mas se você ainda não acredita que Plea Bargain vá ter um perfil racialista e classista, então aqui vai o maior exemplo de como isso se manifesta nos Estados Unidos.
Em um estudo realizado em 2017, o pesquisador Carlos Berdejó, pela Escola de Direito de Loyola, analisou 30 mil casos de Wisconsin, num período de sete anos, justamente com o objetivo de descobrir se há discriminação racial nas Plea Bargains e nas decisões judiciais.
Ele descobriu que réus brancos tem 25% de chances de ter uma acusação grave diminuída ou retirada, enquanto os réus negros tinham maiores chances de serem condenados pela acusação inicial, sem abrandamento. Da mesma forma, um réu branco com ficha limpa tem 25% de chance a mais de receber uma redução de pena que um negro.
E para piorar, quando o réu branco sofria uma acusação leve, ele tinha 75% a mais de chance de ter todas as acusações retiradas ou a pena abaixada para uma muito branda.
A conclusão do estudo foi de que o maior sucesso da utilização do Plea Bargain ocorria quando o acusado tinha ficha limpa. Isso porque ao não ter ocorrência prévia, se torna mais difícil apontar maior periculosidade da pessoa, o que significa que os procuradores podem estar utilizando a raça como argumento oculto para afirmar que o acusado tem perfil reincidente.
Agora, pensa no perfil do preso brasileiro e nas prisões (injustas) do Brasil e me diz se esse instrumento legal faria sentido aqui. Pois é.