“Os Santos”: artista cria quadrinho retratando ‘cidadãos de bem’ e faz sucesso na internet
A cena é muito comum. Uma família de classe média alta, com seus preconceitos e comportamento escravagista, e uma família de empregadas domésticas, moradoras de comunidades carentes.
Contraste social e um retrato do que, muitas vezes, os brasileiros não conseguem enxergar.
Esse é o cenário de Os Santos, projeto do roteirista de cinema e TV, Leandro Assis, que vem gerando burburinho nas redes sociais. Daqueles que concordam com a crítica que o autor e suas tirinhas propõem fazer – desigualdade social, preconceito, racismo, entre outros – até os que enxergam certo exagero, estereotipização e generalização na série.
Leandro já soltou uma dezena de tirinhas em suas redes sociais (das mais de 50 que pretende produzir), o sucesso foi tanto que elas vêm sendo replicadas por outras páginas internet afora. Acompanhe a série aqui.
O SOS bateu um papo com a mente por trás dos quadrinhos para entender um pouco mais sobre suas motivações, o que pensa sobre o Brasil, o que Os Santos buscam trazer para o debate dos problemas da sociedade brasileira e a repercussão do trabalho.
Confira a entrevista na íntegra a seguir!
Quem são Os Santos?
“Os Santos são uma família de classe média alta do Rio de Janeiro. Camilo e Liege são os avós. Eles têm dois filhos casados. E netos.
A maioria deles votou no Bolsonaro. Alguns porque concordam com a visão retrógrada e preconceituosa dele. Outros porque são anti-PT e acreditaram que o [Paulo] Guedes vai dar jeito no país.
A filha dos Santos não votou no Bolsonaro.”
Por que a escolha desse nome para a série?
“Quando comecei a postar as tiras eu não tinha um nome para a família. E aí surgiram muitos comentários de brancos negando o racismo, dizendo que a tira exagerava e disseminava o ódio de negros contra os brancos. Muitos dizendo que brancos pobres sofrem tanto quanto negro pobres.
Muitos também disseram que as negras da tira não tinham do que reclamar, elas deviam era dar graças a Deus de terem empregos e deviam, sim, atender todos os caprichos dos patrões.
E a impressão que deu dessa gente é que muitos deles tem uma autoimagem bem distorcida. Eles não se veem como racistas. Eles acham que estão certos. Eles se acham santos.”
Inspiração, vivência ou um olhar para o Brasil? Como surgiu a ideia de realizar esse projeto?
“A ideia veio vindo aos poucos. Eu sempre quis fazer um trabalho mais autoral, de denúncia, revelando algo que me incomoda. Com a eleição do Bolsonaro eu comecei a fazer uma tira criticando o governo: “Live com o minto Javier Boulsonarro”. Mas nessas tiras eu não conseguia falar das pessoas que colocaram esse governo no poder. Então veio a ideia de fazer uma tira sobre uma família Bolsominion. E que logo na segunda tira eu vi que não era bem isso.
Na verdade a série é sobre duas famílias. Os patrões brancos e a família das empregadas que trabalham para eles.”
O que você pretende mostrar com Os Santos?
“Pretendo mostrar a falta de empatia da nossa elite. O apego aos privilégios da classe dominante, que impede que ocorram as mudanças necessárias para diminuir a desigualdade. Enfim, essa postura escravocrata da elite. Eu comecei a série com esse objetivo, dele falar de um grupo de Bolsominion e do Brasil de hoje. Falar de fake news, intolerância, etc. Agora está mais focada em racismo e desigualdade.
Acho que o Brasil está atravessando um momento tenebroso. Principalmente na cultura, costumes, liberdades individuais e meio ambiente. Sem falar na constante ameaça à democracia. Espero que passe logo essa fase.”
Como vêm sendo a recepção do trabalho?
“A recepção foi extraordinária, surpreendente. Eu estava acostumado já com um pessoal que curtia a série anterior, da live do Boulsonarro, mas com Os Santos o meu Instagram foi invadido por uma galera nova. Ainda mais depois que a Mídia Ninja compartilhou algumas tiras. Em pouco tempo o meu perfil ganhou mais de 100 mil seguidores. Não podia imaginar isso. Além dos comentários. Muitos bastante emocionantes.
Filhas e filhos de empregadas domésticas vendo semelhanças com a história de suas mães. Muitas empregadas domésticas também fazendo relatos pessoais incríveis.
E muita gente apoiando, agradecendo. Tem sido muito emocionante ler os comentários.”
Na primeira tirinha publicada, o nome da série era “Os Bolsominions”. Aconteceu alguma coisa que fez você mudar o nome de uma das famílias protagonistas?
“O nome original era “os Bolsominions” e a explicação era simples. O casal protagonista é elitista, preconceituoso, homofóbico e racista. Que candidato poderia agradar alguém com esse perfil? Bolsonaro, claro. A tira não afirma que apenas ricos brancos votaram no Bolsonaro. A tira não afirma que todo eleitor do Bolsonaro é racista. A tira afirma que esses personagens votaram no Bolsonaro. E por mais que eu explicasse isso, os Bolsominions continuavam contestando, reclamando, ofendendo. E, principalmente, desviando o foco das tiras.
Em vez de falar de racismo e desigualdade, o pessoal discutia se o título era apropriado. Então, para não dar motivo pra Bolsominion vir desviar o foco da discussão, troquei o título.
E tem mais um motivo. Muitos Bolsominions, quando veem que suas ofensas não surtem efeito, denunciam as postagens para o Instagram, que imediatamente tira o post do ar e, às vezes, permite que se recorra. Já derrubaram varias tiras do Boulsonarro. A maioria eu recorri e o Instagram voltou atrás. Mas teve uns três casos em que as tiras foram banidas.”
Uma série de quadrinhos sua, que também envolvia o atual presidente, foi alvo de várias denuncias nas redes sociais, fazendo até com que algumas saíssem do ar. Com Os Santos acontece a mesma coisa, por parte daqueles que não concordam com o conteúdo? O que essas denuncias refletem na atual realidade brasileira?
“Bom. Essa série atual ainda não teve nenhuma tira denunciada, porque é uma série mais comedida no tom. Os Bolsominions revoltados denunciam as tiras da série anterior, da live do Boulsonarro, que é mais delirante, tem um tom mais escrachado, algumas tiras tem violência, etc. De qualquer modo, pelos comentários e denúncias que seguem acontecendo (agora mesmo derrubaram uma tira do Boulsonarro) a impressão que dá é que realmente os intolerantes estão se sentido à vontade para exibir sua falta de tolerância. E ignorância.
É impressionante a quantidade de gente que entra para negar o racismo. E como usam fake news para isso. E como falam com empáfia e arrogância. Principalmente uma garotada entre 12 e 18 anos.
É muito decepcionante, mas esses são os mais agressivos e debochados. Falam como se fossem profundos entendidos em política e racismo. E só repetem chavões e informações equivocadas. Triste.”
Recentemente, um esquema de milícias virtuais, que eram comandadas e orquestradas para atacar pessoas que faziam oposição ou alguma crítica ao presidente da república foi descoberto. Você acha que pode ter sido vítima delas, no caso da série antiga?
“Não sei se alguma milícia virtual participou.
O que eu notei foram alguns perfis bem estranhos. Existem aqueles com muitos números no nome. E existem vários com milhares de seguidores e nenhum post. Ou ao contrário. Centenas de posts e nenhum seguidor. São perfis que chamam atenção. Costuma aparecer juntos. Um apoia o outro na discussão. Não sei se é orquestrado. Mas causa estranheza.
Ah! Claro. Faltou dizer que, além das postagens tiradas do ar, eu também fui bloqueado por vários dias pelo Instagram. Teoricamente o bloqueio acontece quando você parece estar fazendo spam, ou tendo algum comportamento maléfico para a “comunidade” do Instagram. O máximo que eu fiz foi responder comentários das pessoas que chegaram ao meu Instagram. Não sei como isso é motivo para bloqueio. Não sei se é preciso denúncia. Enfim. Não posso jurar que meu bloqueio foi resultado de ação de Bolsominion.”
Em uma das tirinhas postadas, você recebeu uma crítica sobre ser homem, branco, hétero e de classe média, escrevendo histórias sobre uma realidade diferente da sua. Qual foi sua reação?
“Desde que eu comecei a série eu tinha a intenção de chamar alguém para escrever comigo. Eu queria uma mulher que conhecesse bem a realidade das domésticas. Mas, como no início a série ficava mais no apartamento dos Bolsominions, realidade que eu conheço bem, eu comecei a série antes de encontrar a parceira ideal.
Para a minha sorte, quando eu comecei a postar as tiras, muita gente começou a me procurar com relatos. Domésticas, filhas de domesticas, ex-domesticas, militantes do movimento negro. Entrevistei algumas pessoas como pesquisa para a série. Uma dessas pessoas que me procurou tem experiência com textos, é muito ligada nas questões que a tira aborda, então a convidei para escrever.
O nome dela é Triscila Oliveira, 34 anos, cyberativista feminista e de direitos humanos, focando nas vivências de mulheres em situação de vulnerabilidade sócio-racial e estudante autodidata das pautas de gênero, raça e classe. Expliquei que já tinha chamado ela para escrever comigo. Aparentemente ficou tudo bem. E eu entendo totalmente a questão levantada. Em primeiro lugar há sempre o risco de eu não conseguir abordar a realidade das domésticas com fidelidade e realismo por conta da minha origem e da minha realidade. A reação às 9 primeiras tiras foi tão positiva que sei que não cometi grandes erros. Domésticas, negras, negros, foi uma avalanche de comentários positivos, pessoas relatando histórias, etc. Mas isso não quer dizer que eu não poderia vir a cometer erros nas tiras futuras. Então eu mesmo achava importante ter alguém com conhecimento de causa ao meu lado. Mas há outra questão, que é a da representatividade, o protagonismo.
Não é bacana o homem branco vir tirar protagonismo da mulher negra contando a história dela. Mas a série não é apenas sobre as domésticas. É também sobre a família branca, a minha realidade.
Então nada mais justo que tenhamos um homem branco e uma mulher negra dividindo a série.”