O Brasil mudou quando a classe média começou a lavar cuecas
Já parou para pensar no que sustenta a classe média brasileira? O que garante que ela ocupe seu espaço no Brasil? Os produtores do canal Meteoro Brasil já.
Em um vídeo breve, porém esclarecedor, o canal – que trata de cultura pop, ciência, filosofia e política – aborda questões essenciais para entender como o preconceito social, o racismo estrutural e até o fascismo, nos colocaram aqui. E tudo isso se deve a uma coisa: a escravidão.
A começar pelos quartinhos de empregada que muitas construções (não necessariamente tão antigas) ainda preservam; por mais velada que fosse, a representação da senzala – um cantinho onde as empregadas descansavam, após trabalhar dia e noite (por salários baixíssimos, e sem hora extra).
Mas esse cenário mudou ao longo dos anos. Segundo levantamentos oficiais, entre 2002 e 2014:
- A renda dos pobres subiu 129%; (1)
- Houve aumento no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e no combate à pobreza; (2)
- A desigualdade social no país diminuiu; (2)
- A ANAC registrou aumento de 159% no número passageiros de avião no período; (3)
- Brasil chegou a ser a 6ª maior economia do mundo; (2)
Consequentemente, em 2013, veio a aprovação da PEC das Domésticas, dando às profissionais os mesmos direitos dos demais trabalhadores urbanos e rurais. Com direito a hora extra ou aumento de salário, morar na residência dos patrões ficou inviável.
Em 2014, após anos de combate aos privilégios escravocratas remanescentes, veio a crise econômica. Responsável por alterar a dinâmica social, que já estava abalada, de maneira profunda – afetando diretamente a classe média brasileira.
Quando essa estrutura foi atingida e a classe média diminuiu (estima-se que, em 2015, cerca de 1 milhão de famílias viu cair seu padrão de vida), fez com que essa parcela da sociedade, até então acostumada a ter suas casas (e vidas) organizadas pelas “domésticas”, dispensasse completamente esses serviços e tivesse que se virar sozinha – o que inclui lavar suas próprias cuecas.
“Numa sociedade justa, cada um lavaria a sua [cueca]. Aí fora tem uma classe média que discorda de mim. Eles não querem cota, eles não querem preto na Universidade. Eles querem é cueca lavada“, reflete o ‘Homem mais simples’, autor do vídeo.
A analogia das cuecas lavadas, citada no vídeo do Meteoro Brasil, é uma ótima alegoria para entender porque, afinal, setores da classe média ficaram tão raivosos com tantas mudanças sociais, que vinham crescendo ano após ano, culminando em quartinhos vazios e montes de roupa suja no cesto.
Racismo Estrutural
Como a própria expressão diz, trata-se de uma estrutura que alicerça a sociedade como a conhecemos. A relação da classe média e da sociedade brasileira foi estruturada em cima da escravidão – durante séculos. Por isso, além de toda a questão citada, ainda existe o racismo.
Ainda que tente se camuflar, o racismo sempre dá suas caras. Um exemplo claro e recente mencionado no vídeo foi o caso do jovem negro humilhado por duas garotas enquanto fazia seu serviço limpando o chão de uma lanchonete: “limpa o chão, fudido“, foi uma das coisas que o rapaz ouviu.
"LIMPA O CHÃO FUDIDO"
Nosso 2019 começou dessa forma, a impunidade é enorme, além de ser humilhado foi demitido, onde vamos parar? Pra que tanto ódio gratuito? pic.twitter.com/UI6YDTURB1— Movimento Protestante Brasileiro (@MovimentoProte1) April 14, 2019
E aí que entra em cena o rapper mineiro Djonga. A resposta que parte da sociedade deu ao que houve com trabalhador foi: Fogo nos racistas! A frase é parte do refrão de um rap de Djonga e é considerada por ele como “um grito eterno e histórico“.
Fascismo
Outro ponto mencionado como determinante na manutenção das hierarquias social e racial, que garantem que as cuecas da classe média sejam lavadas – por outras pessoas, logicamente – é o fascismo.
Para Djonga:
“Fascismo é o modus operandi, uma forma de se agir politicamente”.
Exatamente o que diz o cientista político estadunidense Jason Stanley:
“Fascismo é uma técnica, um método para conquistar o poder”.
Setores da classe média, então, passaram a utilizar uma de suas técnicas: a vitimização.
- É um absurdo ser obrigado a limpar a própria casa e lavar as próprias roupas.
- Uma loucura, agora tem que pagar direitos trabalhistas às empregadas domésticas?
- Não pode mais exigir que elas morem no quartinho dos fundos, como assim?
Segundo Stanley, outra técnica fascista muito utilizada é rebaixar o outro, dizendo que é naturalmente preguiçoso e que precisa a todo custo ser estimulado a trabalhar.
“A ideia aqui é a de que os opositores do fascismo são naturalmente preguiçosos e mamam no Estado. O fascismo sustenta a ideia de forçar seus opositores a trabalharem de graça, até que aprendam ética de trabalho”, afirma o cientista.
No fim das contas, o que nos coloca onde estamos é o incomodo em ver a estrutura social sendo alterada (ou ao menos balançada). É o incomodo de ver pobre tirando férias, viajando de avião, comprando carro e… bem, sendo feliz.
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— Rem Bodinho ॐ 🦑🌈🚩 (@Rembodinho) May 28, 2019
Djonga, em toda sua consciência social, dá a letra:
“Tem que conciliar trampo pesado, com estudo, com inclusive lazer – que nós merecemos. Todo mundo merece lazer, sacou? Tem que parar com essas coisas. Porque os cara pode ter ego, os cara pode viajar pra Europa, fazer tudo e nós, não. Se nós tem lazer falam ‘porra, meu Deus do céu, tá querendo curtir a vida, aí é difícil, né'”.
Veja o vídeo completo:
YouTube - Meteoro Brasil, BBC, Doméstica Legal, Portal de Revistas da USP