Você já foi constrangido, humilhado ou posto em uma situação vexatória por um superior hierárquico no ambiente de trabalho? Se não, é possÃvel que já tenha presenciado uma cena dessas ou, no mÃnimo, conheça alguém que já passou ou passa por isso.
Uma pesquisa publicada pela BBC Brasil em 2015 mostra que, no Brasil, mais de 50% dos trabalhadores já foram vÃtimas de assédio sexual ou moral no trabalho; outros 34% presenciaram atitudes assediadoras do mesmo tipo; e quase 90% das vÃtimas não denunciaram o assediador.
Antes de aprofundar melhor os conceitos por trás do assédio moral, vamos abordar uma situação recente envolvendo a cantora Anitta: durante uma live, após seu programa no Multishow, a cantora fez uma fala polêmica sobre como lida com seus funcionários. Veja:
Eu não conseguiria conviver pic.twitter.com/uXYvtvQO9A
— FILIPE PAZZOTO (@FilipePazzoto) August 21, 2019
Tecla SAP:
“No meu grupo da empresa, por exemplo, eu tenho uma figurinha ‘Menos R$100’. A cada pergunta estúpida que eu recebo da minha equipe eu mando o sticker [adesivo] que é eu segurando uma plaquinha falando ‘menos R$100 do salário’.
Depois disso acho que metade das perguntas idiotas que eu recebia já não recebo mais. Poupou metade do tempo do meu dia e também do dinheiro, né? Que cê [sic] vai descontando e daqui a pouco o salário quem paga são eles pra mim”.
Não é a primeira vez que a cantora reproduz um comportamento elitista. Em um bloco durante o carnaval de 2018, por exemplo, a cantora – que se posiciona comercialmente como representante da favela – chegou a replicar ideias meritocráticas, afirmando: “Se as pessoas nasceram com mais oportunidade, a gente que corra atrás”.
Na mesma ocasião, Anitta teria discursado sobre como é importante correr atrás dos objetivos sem passar por cima dos outros – o que pode soar incoerente, dada a forma que expôs seus funcionários.
A cantora também não é a única a praticar ou revelar publicamente comportamentos abusivos com sua equipe de trabalho. Os apresentadores Silvio Santos e Fausto Silva (Faustão) estão constantemente envolvidos em polêmicas envolvendo assédio.
2019:
isso que o faustão faz ao vivo se parece demais com assédio moral deus me dibre
— conterrânea da galinha rafinha (@todachrissie) August 18, 2019
2018:
Até quando o Silvio Santos vai continuar submetendo a MaÃsa a esse assédio moral achando que é engraçado. NÃO É. https://t.co/9tKbuhbaRe
— They don’t care about us (@fridasemkhalo) June 27, 2017
A cara de espanto e de nojo de Claudia Leite para Silvio Santos depois do assédio moral e sexual! pic.twitter.com/j46TgwRToX
— Celso Rocha (@celsorocha1968) November 11, 2018
2017:
O que SÃlvio Santos fez com a Sheherazade foi assédio moral. Não gostar dela é diferente de vibrar com humilhação pública
— Violeira (@anacronices) April 10, 2017
Faustão grosseiro. Vamos falar de assédio moral? #DançaDosFamosos
— Eduardo Ribas (@eduardomribas) August 27, 2017
2014:
Se eu fosse funcionário do Faustão ia processá-lo por assedio moral. #DancaDosFamosos
— Suposta hacker (@SonsaAbrao) August 10, 2014
2012:
Ninguém ainda processou o Faustão por assédio moral no ambiente de trabalho?
— Alvaro Olyntho (@alvaroolyntho) August 5, 2012
2011:
Silvio Santos, o rei do assédio moral.
— to neuvosar® (@likeazombie) April 17, 2011
As ‘origens’ do assédio moral
Uma dissertação publicada no veÃculo referência sobre assuntos jurÃdicos Jus, sobre a evolução histórica do assédio moral no Brasil e no mundo, traz uma relação escravocrata a respeito do assunto:
“A cultura da exploração da mão de obra dos escravos trouxe um péssimo legado, onde foi reflexo nas extorsões praticadas contras os que imigravam para o Brasil, e que está relacionado com a ideia de que os empregados são necessariamente inferiores e obrigados a se submeterem à s práticas abusivas, tendo que aceitar as mais diversas formas de depreciação da condição de ser humano e aceitando como condição para o trabalho as várias maneiras de maus-tratos“, destacam os autores.
Segundo o artigo da advogada Verônica Bettin Scaglioni, o assédio moral se constitui enquanto uma “exposição prolongada e repetitiva do trabalhador a situações humilhantes e vexatórias no trabalho“. Verônica destaca que tais ataques ferem diretamente a dignidade fÃsica e psÃquica do trabalhador.
Ao Ministério Público de São Paulo, o Promotor de Justiça Criminal da Capital, Ricardo Antonio Andreucci, também fala como, de maneira geral, ocorrem os assédios:
“A vÃtima, que se torna alvo por resistir à autoridade e não deixar-se subjugar pelo autoritarismo do chefe, é sempre atacada, ultrajada, submetida a manobras hostis e degradantes no ambiente de trabalho“, destaca Ricardo, que também é Mestre em Direito e Professor de Direito e Processo Penal.
No caso da cantora Anitta, apesar da exposição pública ter sido única, ela assume que pratica o ato vexatório contra a equipe de forma recorrente, por meio de adesivos coercitivos em aplicativos de conversa. Isso, somado ao entendimento de estudos e especialistas, sugere que ela tenha, sim, praticado assédio moral.
O que fazer ao ser vÃtima de assédio moral no trabalho?
Infelizmente, não existe uma legislação especÃfica para punir os empregadores que cometem esse tipo de assédio. Entretanto, já existe um projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados para criminalizar assédio moral no trabalho – a proposta ainda precisa passar por apreciação do Senado.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) orienta que, quando se for vÃtima de assédio moral, algumas medidas sejam tomadas:
- Buscar comprovar a prática de assédio, inclusive por meio de testemunhas;
- Procurar o sindicato da categoria a qual pertence, e formalizar denúncia;
- Denunciar ao Ministério Público do Trabalho;
- Recorrer aos Centros de Referências Especializados em Saúde do Trabalhador.Â
O CNJ destaca que práticas de assédio moral são geralmente enquadradas no artigo 483 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Esse artigo menciona que um contrato de trabalho pode ser rescindido a favor do empregado e dando espaço para devidas indenizações quando, por exemplo, “for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo“.
Um dado curioso – e preocupante – sobre as queixas de assedio moral no trabalho é que, apesar de elas terem aumentado, o número de denúncias oficiais diminuiu. Existe uma relação direta com a aprovação da Reforma Trabalhista:
“Os dados apontam para o que a Anamatra [Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho] vem alertando. As pessoas sequer tentam uma indenização, em alguns casos, em consequência da determinação da reforma trabalhista, que entrou em vigor em 11 de novembro de 2017, exigindo da parte perdedora o pagamento dos honorários de sucumbência“, destacou ao Correio Braziliense o juiz Guilherme Feliciano, presidente da Associação.
A forma como a jurisprudência privilegia alguns setores da sociedade é bastante clara, até mesmo no caso Anitta. Consultamos um advogado trabalhista para opinar sobre o acontecimento, de forma anônima, ele respondeu: “[para processá-la] tem que fazer uma coleta exaustiva de provas”. Pois é, a prova coletada em vÃdeo não bastaria.
Resumindo:
- Não existe lei especÃfica para tipificar o assédio moral no trabalho como crime;
- Comportamentos abusivos de empregadores são comumente normalizados pela mÃdia (perceba: Anitta assedia tranquilamente os funcionários ao vivo, com milhares de pessoas assistindo e ao lado de outros artistas);
- As vÃtimas, no geral, se sentem intimidadas e não formalizam denúncia, dentre outras coisas, por medo de perder o emprego e/ou ainda ter que arcar com as custas processuais (legado da Reforma Trabalhista).