Há pouco tempo, viralizou nas redes sociais um vídeo de um garotinho tomando uma “ovada” ultra-mega-turbo da própria família em seu aniversário.
O mais curioso é que muita gente na internet, assim como os familiares e amigos do menino, se divertiram muito com a cena, apesar da criança chorar ao final. Já avisando que cena é forte para quem é mais sensível.
Por isso levantamos o debate:
E aí, essas brincadeiras são realmente inofensivas?
Para responder essa questão, pedimos ajuda da Helena Camino, psicopedagoga, e Helena Lima, pós-doutora em Psicologia da Educação. E elas concordam completamente que o que foi feito no vídeo não foi brincadeira, mas violência!
“O vídeo aponta uma situação muito constrangedora para a criança envolvida. O que deveria ser agradável, se tornou algo bastante frustrante. Baseando-se nesse vídeo, acredito que a criança não tem noção que aquilo era uma brincadeira”, avalia Helena Camino.
E isso não é de se espantar. Afinal, para Helena Lima, o vídeo não mostra uma brincadeira:
“A brincadeira – para ser considerada brincadeira – requer que TODOS os envolvidos tenham voz ativa, participação nas ações e respostas. Que a voz de todos seja ouvida, que as regras sejam combinadas em comum acordo e que todos JOGUEM. Essa é a essência da brincadeira: exercitar o coletivo, as regras, as fantasias, a competitividade, dentre outros processos estruturantes.
Uma “ovada” tal como foi, em que o garoto sequer consegue partir o bolo com os ataques – ou seja, algo em que uma das partes envolvidas não tem qualquer voz, não tem forças, não tem espaço para recusa – não é brincadeira: é agressão.”
Garotinho levando um balde de ovos na cabeça
Violência ou brincadeira?
Para muitos de nós, é complicado estabelecer um limite de onde, a partir dali, a brincadeira se transformaria em agressão.
Para sermos justos, esse assunto ainda é estudado por especialistas. Isso porque tendemos a entender violência como uma conduta que exija contato físico. É fácil percebermos chutes, socos ou tapas como violência. Mas essa diferença fica mais complicada quando acontece em forma de zombaria ou diversão.
Segundo Helena Lima, existe um teste que podemos aplicar a qualquer situação para definir violência: “Quando uma pessoa impõe sua vontade à outra, sem que esse outro possa reagir ou responder, é violência“. Ou seja, se um dos participantes da chamada brincadeira estiver impossibilitado de negar aquela ação, seja por força física, opressão psicológica ou qualquer outro motivo, isso não é brincadeira.
Então isso é bullying com a criança?
Bullying envolve comportamentos agressivos e intencionais, dirigidos repetidamente a um indivíduo. Mas o problema vai além. O riso que nos causa ver alguém “se dando mal” pode ser um sintoma extremamente preocupante: estamos ficando mais anestesiados com humilhações do outro.
Pior ainda, aponta Helena Lima: estamos obtendo prazer com isso!
“Tantos reality shows traduzem isso de modo inequívoco, o prazer em olhar a humilhação, a pressão, as explosões, conchavos, mentiras necessários num cenário canibal, com amplos e fartos patrocínios e milhões de espectadores, isso sintetiza o modo-de-ser em que Homo Homini Lupus [o homem é o lobo do homem, célebre pensamento de Thomas Hobbes] é slogan de muita gente. E muitas dessas pessoas se consideram pessoas de bem…”
“Jamais, ao meu ver, uma chuva de ovos com tamanha agressividade em cima de uma criança é sinal de brincadeira”, considera Helena Camino.
A ovada se intensifica, com empurrões de familiares.
Ovada causa traumas?
Agressões causam traumas, brincadeiras não.
“São duas coisas absolutamente diferentes, embora na aparência possam ser confundidas (grupo, risos, movimentos). Brincadeira é coletiva, pensada, sentida e jogada em conjunto, com todos tendo o mesmo poder para aceitação ou recusa das regras, dos tempos e da compreensão do contexto”, aponta Helena Lima.
Ela também explica que ovada é uma brincadeira com o intuito de homenagear o aniversariante de uma forma engraçada, com todos se divertindo.
“Em síntese, isso [o vídeo do garotinho] não foi uma “ovada” e tampouco “feliz aniversário”. Foi um momento em que uma gangue travestida de amigos se empenha em destruir um momento que seria de felicidade – e o garoto aniversariante, vulnerável, indefeso, realmente foi vítima de uma brutal corja de covardes. Não há humor possível.”
“A criança poderá ter recordações ruins sobre aquele momento em que viveu, onde todo o sonho em esperar pelo dia de seu aniversário foi destruído por pessoas insensíveis”, considera Helena Camino. “Esse momento ficará gravado na memória dele para sempre, podendo causar futuros sentimentos de frustração e insegurança. Sabemos que tudo o que é registrado na nossa memória não pode mais ser deletado e, sim, ressignificado”.
Então esse menininho do vídeo nunca se esquecerá desse momento?
A triste resposta é NÃO.
“Agora, nem todo trauma tem o impacto de mudar a visão de mundo de uma pessoa. Temos mecanismos defensivos, temos resiliência, temos como superar situações adversas. O que acontece em toda experiência, seja ela considerada positiva ou negativa, é uma ampliação do olhar para si mesmo e para os outros. Novos nomes, novas atitudes, algumas com as quais a pessoa terá uma relação afável e outras em que a pessoa se sentirá agredida e terá modos de se proteger e/ou pedir ajuda. As situações de agressividade e crueldade jamais são esquecidas!”, alerta Helena Lima.
As profissionais chamam atenção para o fato da ovada não necessariamente ser agressiva. Imagine que, ao invés de ovos, fosse jogado apenas água no aniversariante. Apenas uma zoeira inofensiva? Depende.
“num dia gelado como hoje poderia ser um bom caminho para uma pneumonia; num dia de alto verão, uma delícia. Ou seja, o contexto vai determinar o caráter positivo ou negativo para a criança/ pessoa. O que se pode concluir sempre é que só será brincadeira quando o aniversariante puder participar plenamente, e não apenas ser massacrado, oprimido ou amarrado em sua chance de resposta”, ensina Helena Lima.
Helena Camino, que dá aula para crianças inclusive do ensino infantil, sabe como esses momentos podem ganhar vulto:
“Tudo depende da situação na qual estamos inseridos. Se tudo for feito com moderação e respeito, as brincadeiras não irão causar qualquer trauma ou problema. Mas se forem brincadeiras agressivas, desrespeitosas e sem limites, poderão marcar o psicológico negativamente”.
Se a ovada, ou qualquer brincadeira, for feita de forma a divertir a todos, INCLUSIVE quem está no meio dela, sem problemas!
Alerta: psicopatas são pessoas comuns e podem estar ao seu lado.
“Esse menino foi TORTURADO. Esfregarem o bolo na cara dele, xingamentos, e a ironia de ser uma agressão com trilha sonora de “parabéns a você”, com um “happy birthday” ao fundo, tudo isso constitui um modo perverso e sociopático de se relacionar com a criança e a infância.
O aniversariante fica em claro e evidente estado de choque, inerte, e o choro que se ouve ao fundo (ou início de choro) pode ser dele, porém demonstra um desespero ante à violência sofrida individualmente por um coletivo insano”, analisa Helena Lima.
E por isso vem esse bônus – esqueça a ideia de psicopatas do jeito que vemos nos filmes de terror. Ao assistir o vídeo, a especialista aponta que ao menos dois dos participantes da ovada se encaixariam em um perfil bastante assustador:
“narcisismo exacerbado (exibicionismo), aproveitar-se do outro, nutrir-se do sofrimento alheio (sadismo), frieza e falta de empatia com qualquer sofrimento (covardia), ausência de limites e formulação de regras próprias do que é certo e errado, ao bel prazer, a chamada “desmentida” – fez e diz que não fez, não fez e diz que fez e assim por diante”.
Todas essas características são sintomas de psicopatia.
Os psicopatas podem estar bem mais próximos do que você imagina. Estamos ficando tão acostumados a rir do sofrimento alheio que não estamos mais conseguindo reconhecer os sinais. E isso também pode servir para você, que compartilhou esse vídeo como gerador de riso.
“Depende da pessoa e do que carrega dentro de si, para se conformar ou não com situações como essas”, explica Helena Camino.
Então não se conforme com as violências sofridas pelos outros, não deixe que seu riso nasça do sofrimento do outro. Para Helena Lima, é importante definir bem o que aconteceu ali:
“Vamos tirar o nome “ovada”. Não foi uma ovada, foi um estupro psicológico feito por mãos, ovos e um bolo que deveria ser de comemoração e apenas foi destruído em nome de uma ‘brincadeira’. Não foi brincadeira, não foi sequer socialmente aceitável. Foi um momento de horror em que vários jovens grandes, covardes, atacaram uma criança”.