Colunas

Juízes trabalham na faxina por 1 dia em curso sobre empatia; o verdadeiro problema continua!

22 de agosto de 2019
Postado por Daiane Oliveira

Se apenas de olhar a imagem de capa desse artigo você já sabe quem é a juíza, então tome nota: o buraco é bem mais embaixo!

Não chega ser uma surpresa. As pessoas que ocupam cargos na magistratura não vieram, de maneira geral, de classes populares (falaremos mais a frente). Pois, será que isso compromete a capacidade destes profissionais de olhar o outro com mais empatia?

Após identificar essa problemática, a Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, desenvolveu, em 2017, um curso peculiar: ‘Vivendo o Trabalho Subalterno’ propõe que juízes e desembargadores experienciem um dia de atividade que não estão acostumados a lidar.

Faxineiro, cobrador de ônibus, gari, operador de caixa, auxiliar de serviços gerais, telefonista… Essas são algumas das profissões em que os magistrados participantes de uma das 3 edições do curso puderam experienciar – a maior parte pela primeira vez em suas vidas – o trabalho braçal.

Liderança, http://www.lideranca.com.br/noticias/lideranca-servicos-participa-do-projeto-vivendo-um-trabalho-subalterno-no-rj/

Juíza do Trabalho trabalhou como faxineira nas agências da Caixa Econômica Federal da Gávea.

Em entrevista à BBC News Brasil, Marcelo Augusto Souto de Oliveira, diretor da Escola Judicial do TRT da 1ª Região e um dos responsáveis pela implementação do projeto contou que a ideia é trabalhar nos magistrados a capacidade de enxergar o outro com empatia, de se colocar – literalmente – no lugar do outro.

Eu não garanto que o juiz vai produzir estatísticas melhores. Não dá grife, aderir ao projeto. Não é um bom capítulo do meu currículo. Mas eu garanto que ele será uma melhor pessoa. E, como acredito que pessoas melhores são juízes melhores, acho que o projeto é essencial”, destacou.

Como o curso funciona

Os magistrados passam por atividade teórica e um dia de treinamento e depois exercem durante um dia útil as atividades para quais foram designados. A ‘revelação’ de que são, na verdade, Juízes do Trabalho só pode ser feita ao fim do expediente.

A adesão ao curso é opcional e, conforme o diretor da Escola Judicial explicou à BBC, houve e ainda há bastante resistência por parte dos magistrados. Muitos deles chegam a questioná-lo sobre quais ganhos teriam com isso e afirmam que não foi com essa finalidade que passaram no concurso público.

Mesmo com toda a resistência, Marcelo Augusto, que além de dirigir a escola, participou das três edições do curso, acredita que a experiência tem potencial de tirar os magistrados de sua zona de conforto e estimular a reflexão.

Um juiz que passa um dia limpando a praia nunca será um gari de praia. O projeto não tem a intenção de transformar a vida inteira da pessoa por um dia. A intenção é submeter uma experiência que eu chamaria até de rala, mas que é capaz de afetá-lo”, pontuou.

Arquivo Pessoal

O juiz do Trabalho limpando banheiros como funcionário de empresa de limpeza.

Porque a necessidade de estimular empatia aos magistrados?

Também em entrevista à BBC Brasil, a juíza do trabalho Adriana Leandro contou que algumas situações relatadas em processos por trabalhadores são tão absurdas que deixam dúvida sobre até que ponto são reais.

Na edição deste ano do curso, Adriana foi telefonista de uma agência bancária por um dia e presenciou  uma colega que ficou as seis horas de trabalho sem levantar sequer para tomar água.

Não porque houvesse alguém impedindo, mas porque ela tinha tanto medo de perder o emprego, e se se levantasse não haveria ninguém pra fazer o atendimento, que ela simplesmente não tinha coragem de ir beber água”, contou.

Os relatos de magistrados que participaram do curso mostram que eles não conseguem dimensionar as vivências dos ‘trabalhadores comuns’ simplesmente porque desconhecem essa realidade.

Quem são os magistrados?

O Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros 2018 realizado pelo Conselho acional de Justiça (CNJ) mostra que, no geral, eles não fazem parte de minorias sociais:

  • Cerca de 60% dos magistrados são do sexo masculino;

  • Mais de 80% são brancos;

  • A idade média dos magistrados é de 47 anos;

  • A maior parte dos magistrados vem de camadas sociais mais altas;

  • Entre os casados, mais de 90% possui cônjuge com ensino superior completo;

  • Cerca de 20% deles têm familiares na magistratura e mais de 50% contam com familiares em outras carreiras do Direito.

Reprodução, https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10162426293855601&set=a.10150325707940601&type=3&theater

Foto oficial do Tribunal de Justiça de São Paulo, o maior Tribunal do mundo, ano 2019.

Tudo isso apenas ilustra uma realidade incontestável: a magistratura no Brasil não é ocupada por quem vivencia o dia a dia da maior parte da população brasileira.

Isso explica (mas não justifica) porque muitos juízes do trabalho, por exemplo, apresentam dificuldade para ‘entender’ o lugar  dos trabalhadores quando julgam ações trabalhistas.

Nessa perspectiva, a experiência proposta pela Escola Judicial pode ter sua validade; visto que aproxima, ainda que minimamente, os juízes e desembargadores – em uma situação quase intocável – da realidade social e trabalhista no país.

LETÍCIA MORI/BBC, https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49270088

Juiz aposentado trabalhou como ajudante de serviços gerais durante um dia.

Mas ‘criar empatia’ é mesmo a solução?

Marcelo Augusto, um dos idealizadores do curso, deixa claro que não pretende resolver, com poucas horas de ‘imersão’ a situação de distanciamento já identificada pela própria magistratura.

Considerando o abismo social que existe entre a população brasileira e os magistrados, uma saída realmente efetiva não passa apenas por levar estes profissionais para experienciar um dia usando transporte público, lavando banheiros ou catando lixo na praia.

É claro que quanto maior a capacidade de juízes e desembargadores de se colocarem no lugar daqueles cujos processos estão analisando, melhor. Mas apenas estimular a empatia nesses profissionais não resolve o problema.

Para entender, precisamos olhar um pouco para a origem da questão: menos de 30% dos alunos em Universidades de ponta são negros ou pardos. Vale destacar que essa população representa cerca de 55% do total de brasileiros.

Com poucos negros e pardos chegando e se mantendo nas grandes Universidades, é de se esperar que eles não consigam atingir os mesmos lugares que os demais acadêmicos – especialmente levando em consideração as implicações do racismo estrutural, que os afeta a cada instante.

Uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) mostrou que advogados negros representam menos de 1% dos profissionais em grandes escritórios.

Com todo esse cenário, e negros ocupando menos de 20% dos cargos na magistratura, não há cursos sobre empatia que resolva. O caminho é dar condições de entrada, permanência e espaço de trabalho a negros, pardos e pobres.

Enquanto a lógica branca e rica na magistratura não for rompida, esse abismo continuará existindo.

CNJ, Livro - Vivendo o Trabalho Subalterno

MATÉRIAS RELACIONADAS