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Esvaziamento do significado em tempos de Meme, uma realidade que teremos que encarar

30 de janeiro de 2019
Postado por Julia De Cunto

Um desenho retratando uma rosa e mãos dadas ilustra a promessa que muitos brasileiros fizeram para o ano de 2019: “Ninguém Solta a Mão de Ninguém”.

A imagem criada pela tatuadora mineira Thereza Nardelli tomou conta das redes sociais após a eleição do presidente Jair Bolsonaro, em outubro do ano passado e foi compartilhada por milhares de usuários, incluindo famosos como Bruna Marquezine, Pabllo Vittar, Bruno Gagliasso e Monica Iozzi.

Reprodução

A arte de Thereza Nardelli viralizou nas redes sociais após a divulgação do resultado das eleições

Como é comum acontecer nas disputas de narrativas nas redes sociais, a imagem foi prontamente satirizada, indicando segurar outras coisas:

Reprodução

Memes circularam nas redes sociais em resposta à imagem viral. A maioria fazendo relação com pênis.

E é desse esvaziamento do seu significado original que surgem os memes, as figuras com frases (ditas) engraçadas que dão o tom, inclusive, da discussão política na internet. Mas como realmente funciona essa narrativa?

 

Memética

Acredite se quiser: a palavra “meme” tem origem científica. Ela foi criada pelo biólogo britânico Richard Dawkins, no livro “O Gene Egoísta”. A intenção era batizar uma unidade de informação cultural – assim como gene é uma unidade de informação genética.

Então, um “meme”, para a ciência, seria como alguém que cantarola uma música em uma sala cheia de gente e, depois, essa música é cantada por mais pessoas ou, ainda, um jeito de usar boné que vira moda na escola. Ou seja, é quando algo “pega”. Na busca por uma palavra que lembrasse gene, o autor reduziu o termo grego mimesis (imitação).

E como o humor “pega”, o termo serviu, então, para batizar fotos e vídeos engraçados (ou não) que são compartilhados por milhares de pessoas nas redes sociais. E para os brasileiros foi assimilada como uma das principais formas de comunicação. E por isso, inclusive são utilizados como propaganda.

Reprodução/Facebook

Empresas embarcam na popularidade que a tragédia em Brumadinho conquistou na internet, reformulando seu significando.

 

Produto nacional

Se tem algo que é consenso até mesmo entra as mais diferentes posições políticas é: em matéria de memética, o Brasil é especialista. Os memes são verdadeiros produtos nacionais e, inclusive, material para exportação, como acontece com a “Nazaré confusa“, “Chico Buarque triste/feliz” e até mesmo a Cuca.

Além disso, eles balançam até mesmo as relações internacionais. Muitos devem se lembrar dos bravos brasileiros que lutaram nas trincheiras cibernéticas da “Primeira Guerra Memeal”, que se deu entre Brasil e Portugal – o Brasil ganhou, obviamente.

https://twitter.com/ricardovnjr/status/742878621648457729

 

Mas a que se deve esse talento nato do povo brasileiro?

A especialista em memes, Gabriela Lunardi, pesquisadora do QUT Digital Media Research Centre (Centro de Pesquisa de Mídia Digital QUT) na Austrália, explica, em entrevista ao Global Voices, que os memes revelam a cultura brasileira, funcionando como uma forma de auto-ironia.

“Ao mesmo tempo que criticamos os nossos problemas como país e o nosso comportamento como sociedade, fazemos humor, como se rir fosse a única alternativa diante daquela realidade. Os nossos memes se apresentam como genuinamente brasileiros porque são paradoxais e complexos, como a nossa cultura. Quando rimos do Brasil é como se, ao mesmo tempo, a gente sentisse vergonha e orgulho de ser brasileiro”, afirma Gabriela.

Em entrevista ao SOS, a doutora em Língua Portuguesa, Lilian Dal Cin, revela que além de rir da própria desgraça, os memes também funcionam como um marketing de ideologia, ilustrando vários acontecimentos políticos nacionais, aproximando grande parte da sociedade.

Apesar da superficialidade para a compreensão de temas mais densos, Lilian acredita que os memes popularizam algumas questões importantes do contexto político, como projetos de lei (legalização da maconha, porte de armas) e corrupção.

“Por exemplo, quando eu recebo um meme que não consigo construir sentido para ele, muitas vezes, acabo me informando com alguém ou pesquisando sobre o assunto. Assim, passo a conhecer algo que acontece no contexto social que levou a produção desse meme. Não acho que ele ajude a entender melhor a política mas, sim, conhecer e se manter mais informado sobre algumas situações que antes ficavam muito restritas a jornais”, exemplifica Lilian.

smoke buddies, http://www.smokebuddies.com.br/brasil-sem-drogas-campanha-contra-maconha-vira-piada-nas-redes-sociais/

‘Brasil Sem Drogas’: Campanha contra maconha vira piada nas redes sociais.

 

Esvaziamento do Significado, precisamos falar sobre isso

É claro que nem apenas de auto-ironia os memes são feitos.

Aliás, muitos deles são utilizados para ofender diferentes pessoas e movimentos, como aconteceu justamente com aqueles que surgiram a partir do “Ninguém solta a mão de ninguém” ou da tragédia em Brumadinho.

Como a força do meme reside na capacidade de transformar o significado original de uma mensagem, é preciso ter responsabilidade na sua criação e circulação. É o que explica o pessoal do canal Mimimídias, em um vídeo sobre a memetização do clipe “This is America”, do cantor Childish Gambino.

A música faz uma crítica à estetização da vida e ao esvaziamento de sentido que assuntos importantes como genocídio negro adquirem na internet. E em um processo metalinguístico, “This is America” também foi esvaziado milhares de vezes nas redes sociais.

“Os memes nos permitem controlar como nos envolvemos emocionalmente com a informação, o que significa que mesmo os problemas mais importantes e dolorosos podem ser achatados em uma mordida descartável de entretenimento. (…) A internet precisa se questionar se um trabalho que especificamente nos pede para pensar sobre a opressão deve ser memetizado por pessoas que não experimentam essa opressão.”, reflete o jornalista Josh Lee em um artigo para PopBuzz.

PopBuzz, https://www.popbuzz.com/music/features/childish-gambino-america-donald-glover-memes/

SEM LEGENDA

Segundo Lilian, tais ofensas existem muito por conta do anonimato, isto é, algum usuário produz, joga na rede e aquilo é compartilhado milhares – e até milhões – de vezes, o que torna difícil de rastrear e, por isso, também podem surgir publicações de cunho racista e sexista.

“É difícil contornar a situação quando isso ocorre. Mas, como foi o caso do viral ‘Ninguém solta a mão de ninguém’, o que pode ser feito é justamente associar a imagem a textos que expliquem a importância do movimento. A melhor ferramenta se torna, então, o didatismo. Não se pode combater os memes que esvaziam o significado de um movimento sério com outros memes, já que o objetivo dessa linguagem é o humor. O ideal é, mesmo, procurar educar politicamente”, conclui.

 

Reapropriação

Esse apagamento consciente do significado pela repetição exaustiva também tem um lado bom. É o que acontece com uso de palavras por grupos sociais minoritários que antes eram consideradas agressivas.

Por exemplo, o termo “vadia”, utilizado pelo movimento de mulheres e os termos “bicha” e “viado” pela comunidade LGBTQI. A irreverência da reapropriação de uma palavra que carrega uma conotação negativa é uma forma de fortalecer os grupos e não se deixar abalar.

Wikimedia Commons, https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Marcha_das_vadias_(8859126848).jpg

Marcha das Vadias em Porto Alegre, 2013

Então, qual mensagem você está oferecendo e compartilhando com o mundo? Ela retira o significado de um movimento importante para alguma minoria? Vocês está sendo realmente responsável?

Seja de que forma for, o melhor mesmo é rir de si mesmo. Nunca do outro.

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