Desbolsonário: Criaram um dicionário indispensável para a sobrevivência nos próximos anos
Desde a campanha presidencial de 2018, Jair Bolsonaro tem disparado uma montanha de barbaridades em suas entrevistas e falas públicas. O atual presidente apresenta soluções aos problemas do país que não sobreviveriam a um episódio de desenho animado.
Com a vitória no jogo da presidência, Jair Bolsonaro foi eleito o 38º presidente do Brasil. O que significa que para sobrevivermos aos quatro anos de idade média, iniciados no dia 1 de janeiro de 2019, será necessário levarmos (um pouco) a sério tais barbaridades e entender o “fenômeno Bolsonaro”.
Se você constatou que já não compreende mais parte do português bolsonarista. Aqui vai, um verdadeiro vade-mécum imprescindível para sua sobrevivência e sanidade nos próximos anos.
As filósofas Luisa Buarque e Marcia Sá Cavalcante Schuback criaram um dicionário para entender o curioso sistema de comunicação criado por Bolsonaro, o “Desbolsonário de Bolso“. São 48 páginas de verbetes que surgiram no país e ganharam significados repetidos de boca em boca, mídia e discursos.
Em comentário, Luisa Buarque nos explica que “a ideia nasceu numa mesa de bar, como não poderia deixar de ser”. A motivação veio “pela mistura de pasmo com indignação. É difícil acreditar que o que tem sido dito tem mesmo sido dito; parece mais um pesadelo”, afirma Buarque.
A autora ainda completa que “tudo não passa de uma tentativa de transformar a raiva e a sensação de impotência em sátira e humor”.
Confira alguns verbetes abaixo que serão muito usados nos próximos anos:
CIDADÃO DE BEM
- Todo brasileiro macho que ganhe acima de dez salários mínimos, desde que não seja homossexual – ao menos não abertamente -, nem muito negro, nem tenha sido pego pela operação ‘lava-jato’ (cf. verbete ‘Lava-jato’ ). A expressão, como está claro, pressupõe que qualquer pessoa que saia do padrão descrito acima seja um ‘cidadão do mal’. Moradores de favelas estão, por definição, excluídos do grupo dos assim denominados.
- Morador de bairros caros de todas as cidades grandes do Brasil, pagador dos IPTU’s mais altos e, consequentemente, pessoa que se acha no direito de fazer qualquer coisa no e com o espaço coletivo, pois se vê como dona dele, e sempre capaz de expulsar qualquer um da sua área, bem como de exigir o que quiser do poder público.
- Pessoa que confunde o público com o privado; pessoa que toma posse do ‘nosso’, porque o ‘nosso’ é seu, uma vez que foi devidamente comprado – e bem caro.
- Segundo a linguista Helena Martins, acrescenta-se a esse sentido uma nuança, que se refere ao homem de ‘não é bem assim’. Ao discutir com simpatizantes do bolsonarismo sobre o risco de eleger um candidato que defende torturas hediondas, a violência violadora de todos os direitos e, sobretudo, do direito de ser humano, muitos reagiram dizendo: “mas não é bem assim”, “isso é só retórica para ganhar as eleições”, “você vai ver que não é bem isso que ele quis dizer”. Assim, surgiu um novo tipo do cidadão: o “cidadão de não é bem assim”, que diz igualmente um “não é bem assim ser cidadão”. E que, paradoxalmente, torce para que o seu candidato não faça o que prometeu.
IDEOLOGIA DE GÊNERO
- Expressão inexistente no léxico das Ciências Sociais e dos estudos de gênero. Locução genérica que designa qualquer coisa que aborde minimamente problemas ligados à discriminação de gênero ou questões ligadas à comunidade LGBT.
- Fórmula criada por bolsonaristas que mostra o gênero de ideologia do bolsonarismo (cf. verbete ‘Sem partido’).
MARXISMO CULTURAL
- Expressão para designar uma nova mistura de alhos com bugalhos.
- Confusão mental pela qual se considera que a crítica às injustiças sociais e econômicas exacerbadas pela globalização é por definição marxista. Como o bolsonarismo se vê como grande crítico da globalização e inimigo do marxismo, o uso da expressão “marxismo cultural” mostra a ignorância da lei básica da lógica, que é a lei da não-contradição. É que, para ser coerente, o bolsonarismo deveria considerar a si mesmo um marxismo, por ser crítico à globalização, o que ademais talvez justifique o uso de barba à la Karl Marx pelo ministro bolsonarista das relações exteriores.
- Xingamento usado por bolsonaristas para atacar toda crítica ao establishment que não seja feita para expandir as leis do establishment.
- Expressão utilizada para rechaçar toda forma de liberalismo, com exceção do liberalismo econômico, que é a única liberdade que os bolsonaristas aceitam. Trocando novamente em miúdos: bolsonaristas querem ser livres apenas para comprar tênis novos, para frequentar qualquer shopping que desejem, para explorar empregados o quanto quiserem (afinal, os empregados são “seus”). E quem não for livre – leia-se, rico – o suficiente, é porque não teve mérito ou talento, portanto, que se dane. Qualquer outra concepção de liberdade é, evidentemente, marxismo cultural.
COMUNISTA
- Bicho-papão, comedor de criancinhas (cf. verbete ‘Anti-comunismo’ ).
- Comunista passa a ser, a partir de 2018 no Brasil, sinônimo de nazista – mesmo que essa operação linguística precise contrariar uma oposição histórica e negligenciar o fato de que comunistas eram explicitamente perseguidos e banidos pelo regime hitlerista. A operação é uma engenhoca simples: nazismo é a designação abreviada do partido nacional-socialista fundado em 1920 na Alemanha, partido reconhecidamente de extrema-direita. Quando expressões compostas são ditas e repetidas velozmente, é fácil que um termo escape e deixe de ser pronunciado. Assim, ouvindo-se ‘socialista’ e ‘nazismo’ soarem em uma mesma frase, juntam-se os dois termos numa afirmação do tipo: ‘socialismo, isto é, comunismo, é sinônimo de nazismo’.
CORRUPÇÃO
- No uso bolsonarista do substantivo, é o termo vulgar de uma bactéria implantada por petistas no corpo político-social brasileiro, que antes jamais havia conhecido tal doença.
- Definição invertida de metonímia, que em vez de tomar a parte pelo todo, toma o todo pela parte, atribuindo somente ao PT a corrupção institucionalizada em todo o país, ao longo de toda a sua história.
DEUS ACIMA DE TODOS
a) Deus:
- O nome da coisa que justifica tudo o que eu faço e digo. Aquilo em nome de que eu posso humilhar, discriminar, violentar.
- “Deus” é mais do que um nome. É um nome usado para se falar em nome de. A colonização foi feita “em nome de Deus”, toda tortura é feita “em nome da verdade”, etc. Assim as grandes palavras da humanidade são nomes para se falar em nome deles. Com isso, isenta-se do esforço de buscar palavras e nomes, do esforço de pensar.
b) Acima de todos.
- O Deus de Bolsonaro está acima de todos, mas acima de deus está Trump. Trump é a trombeta da versão bolsonarista do apocalipse, descrito nas propagandas e discursos bolsonaristas como cavaleiro do Ocidente, o grande salvador dos valores que unem um “nós” indefinido aos valores ocidentais. A mensagem é de que “só Deus pode nos salvar”, com a ressalva de que essa salvação terá que ser feita por uma nação: a nação americana. Deus é recolocado como o grande fiador, só que agora não mais da conquista racional do mundo, mas da venda com papel passado do Brasil aos americanos e conglomerações internacionais. Nota-se, assim, que a expressão, repetida até a exaustão durante a campanha, – “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” – é, naturalmente, a versão tupiniquim de “America First”. Com a diferença de que, no nosso caso, a expressão em sua inteireza diria: ‘Brasil acima de tudo, Deus acima de todos, mas nada sem o consentimento dos EUA’.
DOUTRINAÇÃO ESQUERDISTA
- Novo nome para o que antes era a “conscientização política”.
- Palavra que entrou na moda por decreto quando ficou decidido que a ditadura militar que se instalou no Brasil em 1964 foi um ‘movimento’ e quando se decidiu também que os últimos trinta anos (data exata da redemocratização) foram um período de decadência moral e cívica. Daí a assumida necessidade de se reescrever a história. A estratégia de falsificação da história confunde-se com a necessidade de reescrever a história quando se leva em conta a história esquecida e reprimida das vítimas da história: quando se leva em conta a ausência da história dos negros, da mulher, dos homossexuais e de todos que sofreram segregação e injustiças ao longo dos séculos.