De onde surgiu a ideia de que Pornografia pode viciar?
Segunda parte. (para ler a primeira parte, clique aqui)
Os grupos que influenciam negativamente esse debate com informações enganosas são vários; tem os neo-nazistas e neo-fascistas ProudBoys — fundado pelo ex-sócio da revista Vice, Gevin McInnes —, que argumenta que masturbação e pornografia não são coisas para homens de verdade, homens que querem e precisam encontrar mulheres e ser felizes.
Há também o famoso subreddit transformado em site, o NoFap, um grupo de pessoas, majoritariamente homens, contra pornografia e, muitas vezes, contra a própria masturbação — geralmente temporariamente —, quase sempre por uma ideia de recuperar a sua masculinidade interior, uma ideia sem base científica, embora muito popular em vídeos como o do AlphaSpirit.
Isso se tornou um objeto de estudo pelos neozelandeses Kris Taylor, da Universidade de Auckland, e Sue Jackson Victoria da Universidade de Wellington.
Na pesquisa, lançada em 2018, eles descobriram que o discurso da masculinidade inerente é hegemônico dentro do fórum, sendo possível inferir que a busca pelo corte nos estímulos sexuais é na verdade uma busca mal guiada pela redescoberta do próprio papel de gênero, que para eles acaba sendo idealizado no homem machão, transudo, cheio de energia, força e virilidade — e machismo.
“Eu não tenho certeza se a misoginia é intencional ou não e prefiro argumentar que é uma consequência natural de se ter uma ecologia masculina e fraternal como é esse fórum. Entretanto, essa cultura tem por premissa que a sexualidade masculina precisa ser controlada”, esclarece Kris Taylor.
O principal nome por trás da tese do vício
Embora ambos os grupos tenham importância em como o assunto vem sendo pautado, a popularização da tese do vício se deu realmente nas mãos de um homem: Gary Wilson.
Tratado como o principal especialista nos efeitos da pornografia na mente, Gary concede entrevistas, dá palestras, tem um TEDTalks e coordena um site homônimo ao livro, Your Brain on Porn (Seu Cérebro sob o Efeito da Pornografia), onde atualiza o número de artigos que, de algum jeito, ratifiquem sua tese, ignorando todos os que a negam, isso quando não dedica parte de seu site para criticar ponto a ponto artigos acadêmicos alheio, como se mestre no assunto fosse.
E, numa primeira olhada, ele de fato soa como um pesquisador que domina o assunto, entretanto, ao se aproximar a lupa, a realidade se prova mais complexa e contraditória.
Nascido num lar ateu, descreve-se como um homem alheio a julgamentos morais, com visão política progressista e preocupado com rigor científico e a busca pela verdade. Antes de ser blogueiro e escritor, lecionava patologia e anatomia humana.
Your Brain On Porn foi criado em 2011, após sua mulher, que escrevia sobre relacionamentos num blog, perceber a caixa de mensagens lotada por homens que se diziam viciados em pornografia, relatando problemas como falta de tesão, depressão, ansiedade etc. Após colher os relatos deles, Gary e sua esposa decidiram apresentá-los aos pesquisadores do sexo (psicólogos, psiquiatras, neurologistas etc).
Segundo ele, os especialistas teriam dito: “Não, não vamos estudar isso, não cremos em vício em pornografia.” Foi dessa suposta “arrogância” da comunidade científica que nasceu o site.
O primeiro problema está na credibilidade
Gary, entretanto, não é pesquisador da área, nunca estudou psicologia, nem neurociência, muito menos psiquiatria; também não se especializou em sexologia, e como seu currículo não é disponível online, pode-se pressupor que sequer fez um workshop no assunto.
Da mesma forma, ele não é jornalista, não tendo passado por qualquer veículo de comunicação que o ensinasse a procurar o contraditório e entrevistar mesmo de quem se desconfia. Em outras palavras, Gary não pode ser considerado pesquisador de qualquer tipo, muito menos sobre o cérebro humano, uma área que exige anos e anos de aprimoramento antes de se chamar de especialista.
Tão pouca moral tem o rapaz que o seu tão famoso TedxTalks — tem 11,7 milhões de visualizações no Youtube — vem com uma pequena nota dos editores: “Isto contém várias afirmações que não têm suporte em estudos acadêmico respeitáveis na área de medicina e psicologia. Embora parte do público possa achar esses conselhos úteis, por favor, não assista a essa palestra em busca de indicação médica.”
Ironicamente, Gary conta que foi justamente esse vídeo que o lançou ao status de pesquisador popstar. Ao que parece, quase ninguém leu a descrição do vídeo.
Mas antes sua falta de credibilidade fosse o único problema. Gary se sobrepõe a pesquisadores de verdade por meio de ataques-não-agressivos virtuais. Seu twitter é basicamente um mural de tweets e retweets contra todos os cientistas que discordem dele. É como se ele quisesse se provar certo ao prová-los errados.
Em uma palestra de duas horas postada no Youtube, Gary passa mais de 15 minutos diminuindo a validade do trabalho do pesquisador Joshua Grubbs, o qual passou os últimos dez anos estudando a influência da moralidade no auto-diagnóstico de vício em pornografia.
Para tal crítica, Gary foca quase que exclusivamente no primeiro ano da pesquisa de Grubbs, quando ele ainda era um graduando. Assim, ele ignora os outros nove anos de trabalho sobre o mesmo tópico.
O curioso é que a Grubbs não nega a possibilidade da teoria do vício se provar verdade, mas mantém o ceticismo com o tema justamente por ele ter começado a ser investigado muito recentemente. “Eu diria que em 10 anos nós começaremos a ver essa compulsão virar vício”, contou o pesquisador.
Nessa guerra retórica, Gary se vangloria amplamente de seus “adversários intelectuais” negarem suas convocatórias para debates. E para essa questão, Grubbs, assim como outros pesquisadores entrevistados para essa matéria, tem um resposta muito simples:
“Eu tento não discutir com ele, nem me engajar em debates com ele. Não acho que vá ter algo que o convenceria. E eu acho muito mais importante debater e discutir com pessoas da comunidade científica, analisando o que eles têm a dizer e criticar. O que um ativista diz sobre meu trabalho importa muito menos pra mim do que a comunidade científica”, disse o pesquisador ao SOS.
Outro problema do trabalho de Gary Wilson é a distorção de fatos. Se você abrir agora o Your Brain on Porn vai perceber que o site está repleto de pesquisas acadêmicas e artigos científicos — alguns relevantes, outros questionáveis —, dando a impressão de que sua fala é bem embasada e isso não é exatamente mentira.
Alguns pesquisas de fato apontam para a ratificação da perspectiva do vício em pornografia, isso, porém, não quer dizer que a ciência concorda.
Leva-se anos para que certas afirmações se tornem canônicas aos olhos científicos. Esse é mais ou menos o problema do ovo. Jornais publicam anualmente estudos que se contradizem nos efeitos do ovo, justamente pela falta de noção de que um artigo não fala por todo campo acadêmico.
Gary Wilson seleciona apenas os artigos que concordem com sua versão dos fatos, não pondo em perspectiva com o corpo acadêmico. Além desse erro, ele pega retóricas sobre compulsão no consumo de pornografia e trata como evidência para vício, e como veremos em seguida, são duas coisas distintas, embora interligadas. A epítome dessa confusão é nesta publicação.
Nele, Gary fala sobre a inclusão do Comportamento Sexual Compulsivo na 11ª versão da bíblia da medicina, a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde. É um texto longo, no qual argumenta sobre como comportamento compulsivo, hipersexualidade e comportamento sexual descontrolado seriam sinônimos para vício, algo que mostramos não ser verdade.
Onde procurar ajuda
“Tô com dificuldade de desfrutar da natureza, atividades físicas, eu tenho problemas com a realidade, minha mãe está doente, morando com a gente, afastada da cidade dela, quer voltar pra cidade dela, minha irmã não quer que ela volte, porque aqui tem um monte de médico. Eu sei que isso me causou ansiedade, perdi a liberdade das minhas rotinas, hoje de manhã ela não tava aqui comigo, deu uma frustração, pensei vou pra praia, dar um mergulho, vou pra praia. Não consegui fazer nada. Resumindo, acabei acessando um site pornográfico e me masturbando. Isso é ruim. Isso me faz mal. A sensação é de que eu estou me afastando de Deus”, disse Johnatan, homem rechonchudo e de barba por fazer. Ele estava numa roda com outros três homens numa reunião noturna do D.A.S.A. — Dependentes De Amor e Sexo Anônimos.
Simplesmente saber que compulsão não é vício, que a ciência é mais complexa e que muito ainda está se desenvolvendo não irá resolver o problema velado dos tantos homens, e algumas mulheres, que sofrem em controlar seu consumo de pornografia, isso quando não querem eliminá-la de vez da vida. Para pessoas como Johnatan, cujo nome foi alterado para manter o anonimato, as respostas são para ontem.
O D.A.S.A. é o seu reduto de desabafo, abraço e espiritualidade. Trata-se, se não ficou claro, de uma organização sem centro definido que adapta os 12 passos dos alcoólatras anônimos às compulsões do amor e do sexo.
Com origem em 1984, a organização, embora não seja abertamente religiosa, é claramente espiritualizada e tem seus preceitos embasados no empirismo, não na ciência — e isso não é exatamente um problema, ao menos para os homens ali presentes, que só buscam uma forma de se comprometer com alguém que vá entendê-lo.
Para além dos passos, algumas das dicas listadas nos panfletos deles são: desfrutar de uma refeição individual saudável e atrativa; visitar a natureza; levar a família a um passeio ou piquenique; passear com o bicho de estimação etc.
Para ajudar você, leitor, que procura uma solução mais científicas, o supracitado Marco Scanavino, da USP, indica procurar se há centros acadêmicos de pesquisa e atendimento ao público focados no assunto, tal qual seu local de trabalho, o Ambulatório de Impulso Sexual Excessivo e de Prevenção aos Desfechos Negativos Associados ao Comportamento Sexual (AISEP), que busca regularmente por pessoas com compulsão sexual para tratar e estudar, e que quando a pessoa sofre de problemas morais, indicam a procura por um terapeuta comum.
Para os que são tratados no laboratório dele: são 16 sessões, cuja base é a psicoterapia psicodinâmica. Usa-se os pressupostos da psicanálise de que os sintomas que você está apresentado estão relacionados a vivências estressantes oriundas da infância.
Marco também explica que em outros centros, os medicamentos mais comumente usados são os que têm como base inibidores da receptação da serotonina.
“Eles são os mais usados, primeiro que esses medicamentos tratam de ansiedade, depressão e impulsividade. E os três componentes costumam estar presente em pessoas que buscam tratamento para compulsão sexual. Além de que esses remédios costumam abaixar um pouco o impulso sexual. Esses tratamentos medicamentos são comuns também em outros campos da dependências num geral”, detalha.
David Ley, por sua vez, atenta para que, mesmo que você não sofra de compulsão sexual, mas de problemas relacionados à sua base moral, deve-se procurar por tratamento com sexólogos, pois estes poderão ajudar a entender melhor as travas psicológicas que podem atrapalhar sua vida sexual, para além do próprio pornô.