• Colabore!
  • Sobre nós
  • Contato

Atitude Coletiva

chevron_left
chevron_right

Como o caso DHL ajuda a entender os impactos da privatização dos Correios

A recusa em transportar HQ clássica acende alerta sobre censura.

Rafael Gonzaga Publicado: 24/01/2020 12:43 | Atualizado: 24/01/2020 12:55

A graphic novel “A Louca do Sagrado Coração”, uma das mais célebres colaborações entre o quadrinista francês Moebius e o cineasta Alejandro Jodorowsky, foi lançada em 1996, mas foi assunto nas redes sociais no início de 2020.

O motivo poderia ter sido que só muito recentemente, em 2019, a obra ganhou versão nacional pela editora Vendeta, mas a causa do barulho na internet foi outra: a DHL Express se recusou, em um primeiro momento, a transportar uma remessa de cinco exemplares da publicação.

As políticas internas disponíveis no site da transportadora dizem que é vedado o envio de itens como dinheiro, armas de fogo, drogas e pornografia – os livros, originalmente embalados em plástico-bolha e encaixotados, foram devolvidos à origem sob a alegação de que o “conteúdo enviado não é permitido para transporte”.

A editora usou sua página oficial no Facebook para denunciar a situação e criticou a transportadora, dizendo que “a nova censura vem armada de algoritmos, esquemas monopolísticos e muito dinheiro”.

Na ocasião do envio, a Veneta contratou os serviços da DHL para transportar cinco exemplares do livro para a editora responsável pelos direitos da obra na França, como parte do acordo padrão de licenciamento entre as duas partes.

“A Louca do Sagrado Coração” é uma graphic novel que acompanha um professor em uma jornada involuntária pelas selvas amazônicas, abordando temas como filosofia e religião, sempre com humor, misticismo e erotismo – a capa da versão nacional do clássico traz a ilustração de uma mulher com os seios nus.

Para que a obra tenha sido vetada, o conteúdo precisou ser inspecionado, algo que a DHL garante ter o direito previsto nos Termos e Condições de Transporte, disponibilizado no site da empresa.

 

Afinal, foi censura ou não?

O caso da HQ levantou uma questão em redes sociais como o Twitter: uma transportadora privada pode se recusar a entregar algo como uma obra literária?

No caso da DHL, é garantida a autonomia para escolher os produtos que transporta, como explica William Nozaki, cientista político e economista professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo:

“Evidentemente, não é aconselhável, pela ótica estritamente de mercado, que ela faça tais escolhas orientada mais pela moral do que pelo lucro. E, além disso, não é desejável, pela ótica mais ampla da política, que ela tome tais decisões orientada por preconceitos e moralismos”, explica.

O especialista, contudo, ressalta um ponto importante:

“Ainda que o Estado e a sociedade não possam intervir por meio do direito comercial, podem fazê-lo por meio do direito criminal, caso a empresa incorra em desvios de discriminação ou intolerância”.

No caso da graphic novel, após o barulho na internet, a própria DHL voltou atrás da decisão, dizendo que “ao reanalisar o caso, avaliando maiores detalhes do envio, como país de origem e destino, o roteamento por onde o envio passará até a entrega final, informamos que a remessa não se enquadra na categoria de produto restrito para transporte”. A Veneta, no entanto, decidiu abdicar do serviço e entregar os livros pessoalmente, como divulgou em nota.

 

Público vs. Privado: até onde vale a privatização?

A polêmica da DHL acabou trazendo para a luz outro tema: a privatização dos Correios.

Se uma empresa de transportes privada tem a autonomia de escolher o que carrega, desde que a seleção não seja baseada em aspectos discriminatórios, o mesmo se aplica para uma empresa semelhante na esfera pública?

Felipe Teixeira, mestre em economia e especialista em gestão pública, explica ainda que os serviços públicos, em geral, não podem ser seletivos na escolha da demanda atendida, a não ser em casos específicos e com uma justificativa também de interesse público:

“No caso dos Correios, como hoje o Estado brasileiro presta o serviço por meio de uma empresa pública, não seria necessária uma grande interferência do Estado no funcionamento operativo das empresas privadas semelhantes”, pontua.

Contudo, o governo Bolsonaro incluiu os Correios no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) para que a empresa possa ser privatizada. Segundo a Exame, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse a investidores em Davos que a privatização da companhia ocorrerá, no máximo, até 2021. Caso esse processo se concretize, o cenário muda completamente.

Trecho da HQ “A Louca do Sagrado Coração”

Teixeira explica que no caso do serviço de interesse público passar a ser operado apenas por empresas privadas, como seria o caso com a privatização dos Correios, seria necessária uma maior regulação do Estado no setor, garantindo que o interesse público seja atendido – o que não ocorre na maior parte das vezes.

“As experiências internacionais mostram que essa regulação é sempre complexa e nem sempre consegue garantir o interesse público da forma como a sociedade espera”, contrapõe.

Na mesma linha, Nozaki explica também que a privatização dos Correios traz riscos para a manutenção e ampliação de serviços públicos importantes, já que a agência dos Correios é o único representante da União em muitos municípios pequenos e médios.

“Além de entregar cartas e encomendas em áreas afastadas, onde o mercado não tem interesse de atuar, os Correios tem papel importante na distribuição de materiais didáticos e na disponibilização de serviços financeiros, segmentos pouco lucrativos para empresas”, avalia.

 

Democratização do acesso a serviços

Entender como funciona a relação entre público e privado em uma sociedade é algo complexo, e a balança equilibrada pelo poder do Estado e do mercado na economia de um país vai variar de acordo com os processos históricos, as relações sociais de poder e as características estruturais da sua economia.

Mas, segundo Teixeira, é preciso tomar alguns cuidados:

“No geral, existem serviços básicos que são considerados direitos universais na nossa Constituição e, portanto, precisam de uma forte presença do Estado para garantir o direito de acesso a todos os cidadãos, em especial aos grupos mais marginalizados, que muitas vezes não despertam o interesse comercial como clientes”, explica.

E isso leva para uma outra discussão, que é a relativa à execução desses serviços.

“O fato de serem direitos que devem ser garantidos pelo Estado não significa que tudo precisa ser necessariamente gerido e executado diretamente pelo Estado”, diz Teixeira, complementando ainda: “Em alguns casos, parcerias com organizações da sociedade civil, ou mesmo empresas, dependendo do serviço, podem ser soluções que ampliem o acesso a direitos, ou a qualidade dos serviços”.

Nesses casos, o especialista salienta que a grande questão é que serviços públicos executados por parceiros privados precisam de uma forte regulação, fiscalização e controle por parte do Estado para garantir que estejam atendendo o interesse público da melhor forma possível.

“Muitas vezes, a administração pública não possui capacidade suficiente para fiscalizar e gerir os instrumentos contratuais, avaliar relatórios, definir indicadores adequados, etc.

Todos esses controles ficam muito mais difíceis quando um serviço público é privatizado: nesses casos, o Estado tem muito menos instrumentos para garantir que as empresas privadas responsáveis pelos serviços atendam ao interesse público”, conclui Teixeira.

Rafael Gonzaga
Atual jornalista, futuro youtuber, um dia quem sabe ex-bbb.

Tá na rede!

Em caso de chefe
clique aqui