A graphic novel “A Louca do Sagrado Coração”, uma das mais célebres colaborações entre o quadrinista francês Moebius e o cineasta Alejandro Jodorowsky, foi lançada em 1996, mas foi assunto nas redes sociais no início de 2020.
O motivo poderia ter sido que só muito recentemente, em 2019, a obra ganhou versão nacional pela editora Vendeta, mas a causa do barulho na internet foi outra: a DHL Express se recusou, em um primeiro momento, a transportar uma remessa de cinco exemplares da publicação.
As políticas internas disponíveis no site da transportadora dizem que é vedado o envio de itens como dinheiro, armas de fogo, drogas e pornografia – os livros, originalmente embalados em plástico-bolha e encaixotados, foram devolvidos à origem sob a alegação de que o “conteúdo enviado não é permitido para transporte”.
A editora usou sua página oficial no Facebook para denunciar a situação e criticou a transportadora, dizendo que “a nova censura vem armada de algoritmos, esquemas monopolísticos e muito dinheiro”.
Na ocasião do envio, a Veneta contratou os serviços da DHL para transportar cinco exemplares do livro para a editora responsável pelos direitos da obra na França, como parte do acordo padrão de licenciamento entre as duas partes.
“A Louca do Sagrado Coração” é uma graphic novel que acompanha um professor em uma jornada involuntária pelas selvas amazônicas, abordando temas como filosofia e religião, sempre com humor, misticismo e erotismo – a capa da versão nacional do clássico traz a ilustração de uma mulher com os seios nus.
Para que a obra tenha sido vetada, o conteúdo precisou ser inspecionado, algo que a DHL garante ter o direito previsto nos Termos e Condições de Transporte, disponibilizado no site da empresa.
Afinal, foi censura ou não?
O caso da HQ levantou uma questão em redes sociais como o Twitter: uma transportadora privada pode se recusar a entregar algo como uma obra literária?
No caso da DHL, é garantida a autonomia para escolher os produtos que transporta, como explica William Nozaki, cientista político e economista professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo:
“Evidentemente, não é aconselhável, pela ótica estritamente de mercado, que ela faça tais escolhas orientada mais pela moral do que pelo lucro. E, além disso, não é desejável, pela ótica mais ampla da política, que ela tome tais decisões orientada por preconceitos e moralismos”, explica.
O especialista, contudo, ressalta um ponto importante:
“Ainda que o Estado e a sociedade não possam intervir por meio do direito comercial, podem fazê-lo por meio do direito criminal, caso a empresa incorra em desvios de discriminação ou intolerância”.
No caso da graphic novel, após o barulho na internet, a própria DHL voltou atrás da decisão, dizendo que “ao reanalisar o caso, avaliando maiores detalhes do envio, como país de origem e destino, o roteamento por onde o envio passará até a entrega final, informamos que a remessa não se enquadra na categoria de produto restrito para transporte”. A Veneta, no entanto, decidiu abdicar do serviço e entregar os livros pessoalmente, como divulgou em nota.
Público vs. Privado: até onde vale a privatização?
A polêmica da DHL acabou trazendo para a luz outro tema: a privatização dos Correios.
Se uma empresa de transportes privada tem a autonomia de escolher o que carrega, desde que a seleção não seja baseada em aspectos discriminatórios, o mesmo se aplica para uma empresa semelhante na esfera pública?
Felipe Teixeira, mestre em economia e especialista em gestão pública, explica ainda que os serviços públicos, em geral, não podem ser seletivos na escolha da demanda atendida, a não ser em casos específicos e com uma justificativa também de interesse público:
“No caso dos Correios, como hoje o Estado brasileiro presta o serviço por meio de uma empresa pública, não seria necessária uma grande interferência do Estado no funcionamento operativo das empresas privadas semelhantes”, pontua.
Contudo, o governo Bolsonaro incluiu os Correios no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) para que a empresa possa ser privatizada. Segundo a Exame, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse a investidores em Davos que a privatização da companhia ocorrerá, no máximo, até 2021. Caso esse processo se concretize, o cenário muda completamente.
Trecho da HQ “A Louca do Sagrado Coração”
Teixeira explica que no caso do serviço de interesse público passar a ser operado apenas por empresas privadas, como seria o caso com a privatização dos Correios, seria necessária uma maior regulação do Estado no setor, garantindo que o interesse público seja atendido – o que não ocorre na maior parte das vezes.
“As experiências internacionais mostram que essa regulação é sempre complexa e nem sempre consegue garantir o interesse público da forma como a sociedade espera”, contrapõe.
Na mesma linha, Nozaki explica também que a privatização dos Correios traz riscos para a manutenção e ampliação de serviços públicos importantes, já que a agência dos Correios é o único representante da União em muitos municípios pequenos e médios.
“Além de entregar cartas e encomendas em áreas afastadas, onde o mercado não tem interesse de atuar, os Correios tem papel importante na distribuição de materiais didáticos e na disponibilização de serviços financeiros, segmentos pouco lucrativos para empresas”, avalia.
Democratização do acesso a serviços
Entender como funciona a relação entre público e privado em uma sociedade é algo complexo, e a balança equilibrada pelo poder do Estado e do mercado na economia de um país vai variar de acordo com os processos históricos, as relações sociais de poder e as características estruturais da sua economia.
Mas, segundo Teixeira, é preciso tomar alguns cuidados:
“No geral, existem serviços básicos que são considerados direitos universais na nossa Constituição e, portanto, precisam de uma forte presença do Estado para garantir o direito de acesso a todos os cidadãos, em especial aos grupos mais marginalizados, que muitas vezes não despertam o interesse comercial como clientes”, explica.
E isso leva para uma outra discussão, que é a relativa à execução desses serviços.
“O fato de serem direitos que devem ser garantidos pelo Estado não significa que tudo precisa ser necessariamente gerido e executado diretamente pelo Estado”, diz Teixeira, complementando ainda: “Em alguns casos, parcerias com organizações da sociedade civil, ou mesmo empresas, dependendo do serviço, podem ser soluções que ampliem o acesso a direitos, ou a qualidade dos serviços”.
Nesses casos, o especialista salienta que a grande questão é que serviços públicos executados por parceiros privados precisam de uma forte regulação, fiscalização e controle por parte do Estado para garantir que estejam atendendo o interesse público da melhor forma possível.
“Muitas vezes, a administração pública não possui capacidade suficiente para fiscalizar e gerir os instrumentos contratuais, avaliar relatórios, definir indicadores adequados, etc.
Todos esses controles ficam muito mais difíceis quando um serviço público é privatizado: nesses casos, o Estado tem muito menos instrumentos para garantir que as empresas privadas responsáveis pelos serviços atendam ao interesse público”, conclui Teixeira.