Chega de selfies! Alguns voluntários brancos estão fazendo um péssimo trabalho em países pobres
Não é difícil ver essa cena nas redes sociais. Uma pessoa branca que saiu de seu país para ser voluntária em países pobres, como a África, por exemplo. Um gesto admirável, certo?
Nem sempre.
E é exatamente esse outro lado da moeda que uma campanha mundial vem tentando combater.
Lançada em novembro de 2017, a campanha criada pela ONG norueguesa Norwegian Students’ and Academics’ International Assistance Fund (SAIH) faz parte do projeto intitulado Radi-Aid, que visa acabar com certos esteriótipos das ações humanitárias.
A iniciativa se fez necessária devido a grande “popularização” de registros fotográficos dessas ações divulgados na rede, que quase sempre revelam o voluntário, geralmente branco, cercado por pessoas necessitadas nas mais diversas situações, como recebendo uma guloseima dos estrangeiros, brincando ou trabalhando em meio as condições precárias da região ou até mesmo em hospitais.
De acordo com o conteúdo da campanha, esse simples gesto de registrar e divulgar suas “boas ações” ou a “realidade” de determinada região pode não colaborar beneficamente com as pessoas daquele país e ainda mais, ir na contramão da real função desse tipo de ação, quase sempre proposto pelas ONGs, que é ajudar o próximo.
Como assim?
A grande questão é que muitas vezes esses voluntários, boa parte deles jovens, ao publicarem as fotos de suas ações humanitárias, não se dão conta que reproduzem uma imagem reforçando a ideia do “branco salvador”, que chega em regiões cercadas de miséria e doenças para levar “o bem” aos desafortunados – grande maioria deles, negros.
Ao jogar na rede essas imagens, o registro acaba se espalhando pelo mundo todo, tirando muitas vezes a dignidade e a privacidade dessas pessoas, pois boa parte das imagens, além de serem registradas sem a permissão dos envolvidos, não contam o contexto real daquele momento, tornado-se uma publicação vazia e carregada do esteriótipo negativo que já envolve a população africana.
De acordo com o site NPR, Beathe Ogard, presidente do SAIH, revela que isso é o que podemos chamar de “Complexo do Branco Salvador“, pois boa parte das imagens divulgadas na rede, que são recheadas de hashtags – ajudando ainda mais as fotos a se proliferarem nas redes – retratam pessoas e crianças como se estivessem abandonadas, dignas de dó.
E claro, para o voluntário branco que a publicou, tudo soa como um ato de heroísmo… E claro, uma chuva de likes.
“Uma simples selfie com uma criança Africana, por exemplo, pode perpetuar a ideia de que só o Ocidente salva, cura ou interveem a favor dessas pessoas, como salvadores do planeta” – diz Ogard à publicação.
Até a Barbie reprova
Para reforçar a ideia da campanha e ilustrar ainda mais o comportamento, muitas vezes vergonhoso, um criativo perfil no Instagram, nomeado como “Barbie Savior” (“Barbie Salvadora”), foi criado e já conta com mais de 145 mil seguidores.
No perfil, é usado recursos de photoshop para inserir a boneca em imagens estereotipadas, e com uma leve pitada de humor, escancarar que assim como a “loirinha da Mattel”, os que fazem esse tipo de publicação estão mais preocupados em bombar suas selfies do que realmente fazer a diferença na vida dessas pessoas.
– “Hoje eu sacrifiquei meu regime de beleza diária (usando minha linha de produtos ‘Rodant in Heels’) para visitar um lugar, o ‘hospital’ (se é que você pode chama-lo assim!) Para amar e cuidar de todos os meus queridos anjos africanos. Isso me proporcionou a oportunidade perfeita para tirar algumas selfies com os menos afortunados, mesmo com pouca iluminação. Uma das maiores lições que aprendi ao longo dos anos é que tirar selfies na África não é para os fracos de coração … é uma forma de arte. Arte que aperfeiçoei, junto com minhas coxas super tonificadas. Há um guia de mídia social flutuando para as pessoas que tentam se voluntariar, assim como eu, então estou feliz que agora haja algo para ajudá-lo a aprender como ser mais como eu!”
NPR, Ogard e a co-fundadora da “Barbie Savior”, Emily Worrall, criaram um guia, detalhado abaixo, para que os jovens voluntários e viajantes dispostos a ajudar se tornem um pouco mais conscientes do tipo de conteúdo que estão divulgando na internet.
E claro, os ativistas também esperam que todos se questionem qual o real sentido daquela imagem. A intenção é inspirar outras pessoas para fazerem também a diferença ou simplesmente ganhar uma chuva de likes?
O GUIA DEFINITIVO: “Como se comunicar com o Mundo”
Para quem está pensando em realmente encarar a realidade de outro país e tentar fazer a diferença na vida de outras pessoas, o guia criado por eles pontua alguns tipos de fotos que devem ser evitadas por você.
Mas o ponto principal de tudo é ficar atento para não usar palavras e imagens que denigram a imagem da pessoa ou da comunidade como um todo. Tenha sempre em mente que aquelas pessoas não são pontos turísticos.
“Pense nessa crianças com 25 anos de idade vendo as fotos que você fez. Como elas iriam se sentir?” – aconselha Ogard.
1. Dando guloseimas ou fazendo o famoso “toca aqui” com as crianças
De acordo com Emily Worrall, apesar de atitudes inofensivas como esta, além de toda imagem de “coitadinho, ganhou um chocolate” que a imagem pode trazer, é nesse momento que muitos voluntários costumam prometer coisas para as crianças e depois da chuva de likes, nunca mais voltam para aquela comunidade.
Sem mencionar que esse tipo de imagem é totalmente irrelevante para a causa.
2. Crianças brincando
De acordo com o guia, esse tipo de imagem é um desrespeito à privacidade. Pensa só, quando as pessoas vão para Paris, por exemplo, não costumam tirar fotos dos francesinhos correndo pela rua. Por que na Africa isso acontece?
3. Crianças doentes em hospital
De acordo com o guia, isso representa um total desrespeito com o paciente. Inclusive, essas imagens também são usadas por campanhas de caridade, que mostram os doentes sendo atendidos por médicos brancos. Por este motivo, o projeto Radi-Aid faz até uma premiação das melhores e das piores imagens de campanhas humanitárias.
4. Peça permissão e conte a história
Conforme explica o documento, registrar a pobreza de determinada região não é o grande problema e sim como fazemos isso. O ideal seria retratar que aquela comunidade não é passiva e submissa à todo o caos que se encontram, e que há razões reais para todos viverem naquela situação.
Antes de sair registrando imagens, converse com os locais, pergunte se há algo que eles querem mostrar ao mundo. E com as imagens registradas, conte a real história daquele momento, a localização, peça permissão (principalmente aos responsáveis pelas crianças) para usar a imagem das pessoas envolvidas e cite seus nomes.
Não faça as pessoas sentirem pena daquilo tudo, faça com que perceberem o quão difícil pode ser aquela realidade e o quanto a população está batalhando para virar o jogo. Quem sabe isso não inspire mais e mais pessoas a ajudarem também?
5. Check List final
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Pergunte para si mesmo: “qual a minha intenção com essa publicação?”;
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Obtenha o consentimento da pessoa retratada na imagem. Se você não pode explicar por que você está tirando uma foto, encontre um tradutor;
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Conheça o nome e os antecedentes das pessoas retratadas;
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Ofereça à pessoa da foto uma cópia da fotografia;
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Evite generalizações simplificadas e abrangentes, inclua texto informativo com nomes, local, etc;
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Seja respeitoso sobre as diferentes culturas e tradições;
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Pergunte-se: eu apreciaria ser retratado da mesma maneira?;
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Evite situações sensíveis e vulneráveis e determinados locais, tais como hospitais e clínicas de saúde;
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Não se retrate como o herói da história transmitida;
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Desafiar as percepções, derrube estereótipos!
Para ver o guia completo, disponível para download, clique aqui.
Veja abaixo a animação que faz parte da campanha, publicado pelo canal do Youtube do SAIH (em inglês) :
NPR, Mundo Negro, Barbie Savior - Instagram, Rusty Radiator, AJ+ - Facebook