Autocontrole: evitar desejos com a força de vontade é uma estupidez
Diversos estudos mostram que a força de vontade não é a melhor forma de evitar seus desejos — e que essa atitude ainda pode te prejudicar de outras formas. Para ter mais autocontrole em sua vida, a melhor saída é se privar.
Tenho certeza que você já se sentiu um fracassado por, em algum momento da vida, não ter tido força de vontade o suficiente para realizar algo que era importante para você. Seja seguir uma dieta, praticar atividades físicas, largar um vício…
Mas pode ficar tranquilo pois isso é muito comum e todo mundo passa por situações semelhantes. Além disso, diversos estudos mostram que a “força de vontade” não é a melhor forma de evitar seus desejos — e que essa atitude ainda pode te prejudicar de outras formas.
Joseph Everett, dono do canal “What I’ve learned” focado em temáticas polêmicas, divulgou um compilado de informações e estudos relacionados ao assunto. O título do vídeo em questão: “Willpower is for Losers” (em tradução, “força de vontade é para perdedores”).
Vamos entender o que ele quis dizer com isso.
Força de vontade é para perdedores?
Everett começa compartilhando uma experiência pessoal.
Ele mostrou para sua namorada o KSafe, um pote de plástico que tem uma função bastante específica: você fecha a tampa e programa um tempo pelo qual o pote deve ficar trancado. Somente após esse período é possível abrir novamente o recipiente e pegar o que está lá dentro. O produto não está à venda no Brasil, até o momento dessa publicação.
Nesse caso, ele havia trancado um controle de videogame porque achava que estava jogando demais e sem o controle não seria possível fazê-lo. Ela o perguntou: “Você não pode simplesmente resistir e não jogar?” Então, levanta a questão central:
Qual é a diferença entre resistir a uma tentação e não ter uma tentação?
O experimento do marshmallow
O “experimento do marshmallow” é um estudo feito em 1972 na Universidade de Stanford pelo psicólogo Walter Mischel. A ideia é simples, e semelhante a um “desafio” que talvez você tenha visto nas redes sociais há alguns meses.
Algumas crianças foram colocadas sozinhas em uma sala, sentadas em frente a um marshmallow. Os responsáveis avisavam que iriam sair mas voltariam em dez minutos, e que durante esse tempo as crianças não poderiam comer o doce.
Se elas conseguissem resistir à tentação, após os dez minutos elas ganhariam outro marshmallow e poderiam comer dois em vez de apenas um.
O experimento foi registrado com câmeras escondidas, e durante o período de espera as crianças encaravam o marshmallow, cheiravam e até lambiam. Apenas 1/3 das 32 crianças testadas conseguiu resistir durante os 10 minutos, enquanto o restante comeu o doce mesmo sabendo que perderia a chance de ganhar outra unidade.
O que diferencia as crianças que resistiram à tentação das que acabaram comendo o marshmallow “proibido”? Em breve voltaremos a falar sobre isso.
A força de vontade é um recurso limitado
A gente já sabe que resistir a uma tentação exige esforço e não é nada fácil, mesmo havendo recompensas como um marshmallow extra, por exemplo. Geralmente ficamos felizes e satisfeitos quando temos força de vontade o suficiente para alcançar um objetivo.
Mas existem consequências negativas quando você se esforça para evitar uma tentação?
Um estudo feito pelo psicólogo Roy Baumsteir e seus colegas Ellen Bratslavsky, Mark Muraven e Dianne M. Tice mostrou que pode, sim, haver consequências. O experimento foi feito com 67 participantes que estavam há 3 horas sem comer e foram colocados em uma sala que tinha o aroma de “cookies de chocolate recém assados”.
Eles foram colocados em uma mesa com dois potes: um cheio de cookies e outro cheio de rabanetes. Parte dos participantes foi obrigada a comer os rabanetes e não podia tocar nos biscoitos, enquanto a outra parte tinha a liberdade para comer os cookies à vontade. Então, eles tiveram que montar um quebra-cabeça bem estressante e que, sem saberem, era impossível.
A ideia era verificar quanto tempo eles levariam para desistir do quebra-cabeça. Resultado: os que tiveram que resistir aos cookies, desistiram duas vezes mais rápido do que aqueles que não precisaram resistir à tentação.
Isso mostra que o fato de estarem usando sua força de vontade para não comer os cookies fez com que eles tivessem menos força de vontade para persistir no desafio.
Este foi um dos experimentos realizados pelos estudiosos para provar a ideia de “ego depletion“, ou esgotamento de ego. Esse conceito mostra que a força de vontade é um recurso limitado e pode se esgotar. É como um músculo, que após ser submetido a determinado esforço se cansa e precisa de um descanso para se recuperar.
Já começa a ficar mais claro a relação disso tudo com o fato de muita gente ter desistido de fazer quarentena na pandemia de Covid-19.
Tentações são distrações (se não agora, em breve!)
Joseph Everett afirma que, intuitivamente, todos nós sabemos que as tentações são uma distração. É mais difícil trabalhar quando você está de dieta e sente o cheiro de uma comida que você ama e não pode comer. Vai ser mais difícil se concentrar nos estudos se for sexta à noite e seus amigos te chamarem para sair.
Um estudo de 2012 publicado no Journal of Personality and Social Psychology, testou 205 adultos que estavam resistindo a alguma tentação. Eles tinham que usar um aparelho por uma semana, que em momentos aleatórios durante o dia enviaria perguntas sobre o que eles desejavam, o quanto eles desejavam aquilo e se estavam conseguindo resistir à tentação.
Cerca de 8 mil tentações foram reportadas durante a semana de experimento. A conclusão reforça a ideia de que a força de vontade é limitada. Quanto mais você resiste a tentações, maiores são as chances de você se entregar a outro desejo em algum momento.
Por exemplo, se você passou o dia no trabalho usando toda a sua força de vontade para resistir às redes sociais, aos jogos no celular, às conversas com os amigos e focou inteiramente nas suas obrigações, as chances de você chegar em casa e se render à Netflix em vez de ir para a academia, ou de comer um doce em vez de se manter na dieta, são muito grandes.
Outra conclusão interessante deste estudo: pessoas que reportaram menos tentações durante a semana de experimento, demonstravam maior força de vontade para resistir aos desejos. Ou seja, as pessoas com maior autocontrole eram aquelas que menos usavam o autocontrole, já que precisavam resistir a menos tentações.
O que há de tão bom no autocontrole?
Outro estudo, chamado “What’s so great about self-control?“, realizado por Marina Milyavskaya e Michael Inzlicht — dois psicólogos e professores universitários canadenses — testou 159 estudantes universitários e fez uma descoberta interessante.
As pessoas que mais exercem o autocontrole não são as que obtém mais sucesso atingindo seus objetivos. Os mais bem sucedidos são aqueles que planejam sua vida para não precisar se controlar ou resistir a tentações.
Everett revela que desde que passou a trabalhar em home office, jogar vídeo game durante o dia é sempre uma opção. Como a possibilidade de jogar está sempre ali, ele acaba se distraindo e até negociando consigo mesmo:“vou jogar apenas por 20 minutos e depois trabalhar por 1 hora”.
Aposto que você também já se pegou nessa situação alguma vez na vida.
A questão é que, mesmo se tiver autocontrole e não parar de trabalhar para jogar video game, a simples necessidade de resistir àquela tentação faz com que você se distraia e tenha sua produtividade diminuída.
O psicólogo Glenn Wilson afirma, baseado em seus estudos, que a vontade de checar um simples e-mail em sua caixa de entrada durante o trabalho pode diminuir seu QI em 10 pontos.
Como se livrar dos maus hábitos?
O autor de best-seller sobre bons hábitos, James Clear explica, em seu livro “Hábitos Atômicos”, que existe um ciclo composto por 4 fatores: sugestão, desejo, resposta e recompensa.
Um exemplo: você está no trabalho às dez e meia da manhã, entediado, cansado e sem conseguir focar no que está fazendo. Essa situação é uma sugestão para o desejo de tomar um café. Em resposta a esse desejo, você se levanta a vai tomar o café e então vem a recompensa: mais energia e o prazer proporcionado pela bebida.
O autor afirma que você só consegue se livrar dos maus hábitos quando um ou mais fatores desse ciclo deixam de existir.
Se você passa a dormir melhor e não está cansado às dez e meia da manhã, então não vai haver a sugestão ou o desejo de tomar café, por exemplo. Ou você está cansado nesse horário, mas responde ao desejo de uma forma diferente e joga uma água no rosto em vez de se recompensar com o café.
Qualquer uma dessas ou outras mudanças de atitudes vai fazer com que você enfraqueça seu hábito — nesse caso é o café, mas serve para qualquer coisa. Clear diz que essa é a melhor forma de se livrar de um hábito: enfraquecendo-o a partir da quebra do ciclo.
Se olhar para uma barra de chocolate faz com que você queira comê-la, coloque-a em um local onde ela não possa ser vista. Se você se desconcentra e checa o celular sempre que vê uma notificação, o ideal é desligar o celular ou guardá-lo na gaveta. Dessa forma não há sugestão ou desejo, e o ciclo não se inicia.
Em vez de tentar resistir a uma tentação, você deve criar outras estratégias para que a tentação não exista.
De volta às crianças e ao marshmallow
Depois de entender tudo isso, podemos voltar ao experimento do marshmallow para entender como 1/3 das crianças conseguiu resistir à tentação. Foi observado que as crianças bem sucedidas no teste foram aquelas que em algum momento fecharam seus olhos para não ver o doce, cantaram sozinhas, inventaram jogos com as mãos ou pés…
Elas fizeram o que conseguiram fazer para tirar sua atenção do marshmallow, e assim elas se distraíam e precisaram usar menos força de vontade. Viu como encaixa com a conclusão de todos os outros estudos citados?
Usar a força de vontade ou se privar das tentações?
Pelos estudos, podemos concluir que usar a força de vontade para evitar as tentações não é a melhor opção. Ter a possibilidade de “cair em tentação” o tempo todo, faz com que você viva com uma sensação persistente de indecisão, incerteza e até ansiedade.
“Devo trabalhar ou assistir Netflix? Devo estudar ou jogar video game?” Qualquer que seja a decisão, terá um custo e uma recompensa.
Se escolher trabalhar, o custo é ter que usar a força de vontade para ter a recompensa de cumprir suas obrigações e ficar livre para fazer o que quiser. Se escolher a Netflix, o custo é a frustração de não ter força de vontade o suficiente, mas a diversão será a recompensa.
Essa incerteza faz com que você fique confuso e em um estado constante de ansiedade, diminuindo sua habilidade para focar no que é realmente importante. Quando você se priva das distrações, não há mais a dúvida sobre fazer aquilo ou não, e seu cérebro acaba se esquecendo daquela tentação.
Quando o autor do vídeo tranca seu controle de vídeo game no pote, o jogo deixa de ser uma opção e ele não precisa mais se decidir entre jogar ou trabalhar. Ele simplesmente trabalha e, no momento em que o pote for destrancado, ele pode jogar sem culpa ou frustração.
Assim, ele precisa usar menos força de vontade e retoma o controle de sua vida – com perdão do trocadilho.